Transilvania Season - Ep 41, Elizabeth

Quem contou que Beth não tinha coração, certamente se surpreendia com a capacidade que tinha de tentar oferecer ajuda a pessoas que supostamente não tinha nada a ganhar. Se ela gostava realmente da monotonia que a sua vida se tornara, não o parecia. A verdade é que seguia para um caminho sem retorno. Não que se importasse...

"This Isn’t The Best Day to Decide to Have a Heart" by Elizabeth Wood

Depois de receber um não redondo de Sheftu, e ainda mais irritadiça do que quando a tinha encontrado, regressei às escadas, lembrando-me apenas um segundo depois de que mandara Celine embora.
 Cerrei os punhos numa tentativa frustrada de não desfazer uma parede, e iniciei a minha longa viagem até ao cimo da gigantesca escadaria. Como se o facto de ser descomunal não bastasse, era bafienta e opressiva, facto no qual só reparava agora. Tinha estado demasiado ocupada a manter Celine nos próprios pés quando descera, e há muito tempo que não ia ali.
 Os presos nas celas de alta segurança eram aqueles que eram essências preservar com vida ou, pelo menos, deixar morrer naquele sítio. Se alguma vez tivesse tocado num dos presos de alta segurança sem autorização, o mais certo era apanhar uma grande enxaqueca e irritar profundamente Gustav, o que, independentemente de tudo o resto, não era nada agradável, logo eu só tinha a ganhar se me mantivesse afastada das suas preciosas celas, e os guardas que acarretassem as vítimas escada acima até junto de mim.
 Na maioria das vezes, Gustav interpretava os presos daquela região do castelo como “Presos Políticos”. Não os capturava apenas por o terem ofendido ou por terem de pagar por algo. Fazia-o porque eles eram importantes para obter informações, de modo a poder jogar com os seus “peões” o melhor possível – e “melhor” não era sinónimo de “menos letal para os participantes” -, ou, como no caso de Sheftu, por puro interesse neles. Era costume ver os chefes de operação ou de um bando encarcerados naquelas celas.
 Os meus pensamentos foram bruscamente interrompidos quando embati em algo sólido, sendo atirada para trás uns três degraus. Aquilo em que tinha embatido parecia vivo, porque arfava ligeiramente.
 Levantei os olhos.
 Era Kiya.
 - Que giro… – Comentei – Estava mesmo agora a falar sobre ti.
 Kiya deu um passo em frente, de peito empertigado.
 - Sai! – Ordenou, bruscamente – Sem o teu querido amo a quem lamber as botas, eu fico no comando. Não te atrevas a meter-te no meio.
 - Sim, porque tu poderias, realmente, acabar comigo em três tempos – Escarneci.
 As feições dela adquiriram um tom carmesim, com sérios lampejos de raiva a atravessarem os seus olhos e os nós dos dedos salientes.
 - Ouve Elizabeth, eu tenho mais que fazer…
 Interrompi-a.
 - Sim, sim, boa sorte e diz-lhe olá por mim.
 Saltei dois degraus e contornei-a, ainda de punhos cerrados e estática no meio da escadaria. Durante os breves segundos em que lhe passava ao lado, interroguei-me sobre o que aconteceria se a atirasse escada abaixo… Talvez morresse, por não ser exactamente vampira. Como não havia corrimão, ao lado da escadaria havia um enorme fosso, ao nível dos calabouços, que já ficavam vários metros debaixo de nós.
 Acabei por largar esta ideia quando me apercebi de que tinha mais que fazer do que fazer experiências, ainda que isso comprometesse a ciência. Caso não resultasse, isso iria tornar-se um incómodo. E depois alguém havia de me perseguir com uma faca na mão, acabando morto e gerando-me ainda mais problemas – que, agora que pensava nisso, também surgiriam se Kiya morresse por causa do impacto. Será que lhe implicaria hematomas intra-cranianos? Ou não havia nada lá dentro que pudesse ser danificado?
 De qualquer forma, atirar Kiya das escadas abaixo tinha de esperar, pelo menos por enquanto. Mas não foi por isso que deixei de o acrescentar à minha lista de coisas para fazer – que, neste momento, tinha como topo encontrar uma gata tresmalhada.
 Por isso, deixei Kiya plantada no corredor, sem a ver mexer um tendão que fosse até eu estar a muitos metros de distância. Depois disso desatou a correr escada abaixo.
 Cheguei à pequena câmara que antecedia as escadas em dez minutos, a uma velocidade acrescida. Pronto, agora só me restavam centenas de metros quadrados onde Celine pudesse estar.
 Atravessei a porta e comecei a palmilhar o corredor, em direcção ao quarto dela.
 Só vinte metros mais à frente é que me apercebi de que não fazia a mínima ideia de qual seria o quarto dela. A única vez que a vira deitada numa cama, esta encontrava-se no primeiro quarto que me aparecera à frente, por razões de rapidez.
 Derivei por vários corredores empedernidos e bolorentos, alguns dos quais decorados com velas ou candelabros, outros com janelas próprias, alguns totalmente às escuras e outros que eu nem tinha a certeza se eram ou não corredores. De vez em quando, sustia a respiração e escutava o burburinha que vinha detrás das portas, mas nenhum deles se revelou como pertencendo a Celine ou sequer ao seu marido. Houve apenas uma, ligeiramente mais aguda, que eu confundi como sendo a dela, mas depois interceptei algumas das suas palavras que comentavam nada mais, nada menos do que sobre ela e a preferência que Gustav lhe dava, logo não me pareceu que se tratasse da própria, mas sim de um feitiço – bastante mal elaborado – de alteração de voz, que lhe permitia adoptar o tom eloquente e o sotaque australiano de Celine.
 Vinte minutos depois, dei comigo no salão principal, àquela hora quase vazio. Por ali apenas deambulavam algumas criaturas, a limpar ou a conversar.
 Virei no primeiro corredor à direita, depois fiz dois à esquerda, enveredei pelo central e fiz uma nova curva à direita, apenas para dar comigo num dos infinitos corredores de acesso, bem iluminado e cheio de portas, algumas das quais deveriam pertencer a quartos.
 Deambulava impaciente por esse corredor quando voltei a detectar o sotaque australiano, desta vez bastante mais perfeito. Encostei o ouvido à parede e fiquei à escuta durante alguns segundos, até ter confirmado de que se tratava da própria.
 Abri a porta com um gesto brusco.
 No momento em que entrei, consegui detectar réstias de movimentos apressados, e Celine encontrava-se no meio da divisão, estática e de respiração suspensa.
 - Lençóis para lav… - Começou. Mas depois viu que era eu e suspirou de alívio.
 Ao seu lado, encontrava-se uma enorme pilha de lençóis.
 - A sério? Achas mesmo que isso o esconderia? Consigo ver-lhe alguns cabelos e os lençóis estão a respirar. Como é que justificas isso?
 - Queria ver-te arranjar melhor em dois segundos. – Resmungou.
 - Queres mesmo? – Desafiei, mas ela fingiu que não tinha ouvido.
 -Bem, – Comecei – podes ir falando sobre a Nneida durante o caminho. Temos de nos pôr a andar para te tirar daqui.
 Ela fez um ar surpreso, mas não disse nada com medo que eu retirasse a oferta.
 - Como é que o levo? – Perguntou, apontando para o monte de lençóis.
 - Hum… Não posso invisibilisá-lo, porque o mais provável é alguém estranhar estar a transportar o ar. Eu diria para o levares ao natural. Assim mesmo. Se alguém nos vir eu trato de acabar com as provas.
 Celine esboçou um sorriso e dirigiu-se ao monte de lençóis, pegando no marido com os dois braços como se fosse embalá-lo, e seguiu-me até ao corredor.
 - Se formos ate ao salão, há um corredor que dá para um sala pequena e atarracada, que já não é usada à muito tempo, pela qual vocês podem sair. Uma vez na aldeia vai ser mais fácil, mas passar pelos guardas não é, de todo, descomplicado. Se esperarmos cerca de vinte minutos creio que podes tentar passar com as carroças dos comerciantes, que saem a essa hora para as casas de campo, juntamente com aquela enorme multidão de gente. Por mais que tente, Gustav nunca conseguiu impedi-los de fazer aquilo. Não são lá muito instruídos, e muito menos inteligentes. Nesta zona as pessoas não se desenvolvem. Não precisam.
 Celine acenou. O maior desafio seria, portanto, ir até ao salão sem ser visto. O salão era grande e amplo, logo quem estava numa ponta podia ver perfeitamente bem para a outra, naquela altura em que estava vazio.
 Tentei fazer o caminho para trás, invertendo as passagens. Seria esquerda, centro, direita, direita, esquerda; ou centro, esquerda, direita, esquerda, esquerda?
 Para meu grande alívio, Celine foi à frente, percorrendo os corredores com habitual agilidade como se os conhecesse desde sempre, o que era bastante provável.
 No fim, depois de virarmos à esquerda, consegui avistar a luz vaga do salão. Era naquele momento.
 Tomei o lugar da frente, com Celine bastante relutante atrás de mim. Fui a primeira a sair para o salão, enquanto ela ficava nas sombras.
 Havia lá demasiada gente. Na sua maioria todos olhavam para mim, com mistos de medo, respeito e aborrecimento no olhar, que só demonstravam que não estavam nada agradados por me ver. Eu atraia demasiado as atenções.
 - Acho que vamos precisar… - Murmurei, divertida, para que só Celine me ouvisse – De uma pequena distracção. Corre assim que eu correr.
 Concentrei-me em todos eles, escolhendo um que se encontrava mesmo no meio com ar de enjoo e aborrecimento, bastante superior a todos os outros.
 Caiu redondo no chão. Todos os olhares foram atraídos para ele durante segundos, altura na qual eu corri desenfreadamente até ao outro corredor, antes que eles pudessem olhar para mim amedrontados. Uma rapariga viu-me, e preparava-se para apontar quando caiu, também, redonda no chão, com a boca ainda aberta para tomar ar.
 Celine galgava o corredor mais rápido do que eu lhe tinha julgado possível. Mantinha-se nas sombras, quase invisível, olhando furtivamente em todas as direcções, enquanto saltava delicadamente sobre o chão pedregoso, como se este fosse perfeitamente nivelado e seguro.
 Chegámos, por fim, e mais rápido do que eu julgara possível, a uma pequena antecâmara, que dava depois para um salão ainda maior.
 Havia uma espécie de arco em ogiva que dava para um corredor vazio e escuro, ainda mais bafiento do que aqueles que conduziam às celas, e tão estreito que apenas ficariam dois centímetros entre mim e a parede, se eu decidisse atravessá-lo.
 - Vai! – Ordenei para Celine. Ela pareceu bastante confusa.
 - Mas faltam as informações – Protestou a meia voz.
 Abanei a cabeça, suspirando.
 - Não tens tempo. Não foi prazer nenhum ajudar-te. Na realidade, foi uma enorme maçada, mas não quero que seja tudo em vão. Não era assim tão importante. Era mais curiosidade.
 Celine acenou, os olhos a encherem-se de lágrimas, mas antes que eu pudesse ter reclamado, ela já se lançara a correr corredor abaixo.
 Voltei, cabisbaixa, a percorrer os corredores até ao salão… Agora que pensava nisso, tinha importância. Mais importância do que eu lhe atribuíra.
 Cheguei ao salão, sem me importar em andar rapidamente, de olhos fixos no chão, numa enorme luta interior para me obrigar a fechar uma centena de sentimentos num canto fechado do meu coração empedernido, quando alguém se aproximou de mim a barafustar e a berrar. Não pensei que fosse comigo, até um dedo em riste entrar bruscamente no meu campo de visão.
 - Mataste-o! Sua bruxa hedionda! Mata-me se quiseres, mas tens de ouvir isto, filha do Diabo!
 Olhei para a mulher esgalgada e pálida, com os olhos vermelhos de choro. Seria, com certeza, a mulher do rapaz que eu matara. Poderia tê-la morto, até o deveria ter feito, mas não o fiz. Não porque ela me enfrentava, isso deveria ser punido, mas porque, junto ao corpo ainda caído no chão, um par de olhos brilhantes fitava os meus, chorando copiosamente.
 Tinha os cabelos castanhos e os olhos azuis, os lábios carmesim e um nariz pequenino, coberto de sardas. Era demasiado bonita para ser tomada como a filha de uns camponeses, mas era-o. Muito perfeita, com apenas cinco ou seis anos, e o seu rosto enchia-se de dor e conspiração enquanto buscava sensibilidade nos meus olhos.
 Surpreendi-me a mim mesma ao murmurar.
 - Lamento – E continuei o meu caminho. A mulher permanecia estática quando abandonei o salão. Era mais do que obvio que não esperava aquela.
 Tinha dado dois passos na direcção das trevas mal iluminadas quando ouvi um grito.
 - Penetração! Entraram no castelo! Aos vossos lugares!
 A minha cabeça, que nunca assistira ao que quer que fosse parecido, girou a vários quilómetros hora. O quê? Como era aquilo possível? Atacar. Defender. Fugir. Seguir. Matar. Centenas de ideias indefinidas. Mas depois lembrei-me: Era mais importante do que julgava. E corri pelo corredor abaixo. Quem quer que fosse que tinha quebrado a protecção, era forte e poderoso. Extremamente.
Fui dar àquela porta extenuada, com as faces muito coradas e a respiração ofegante. Nunca, desde à muito, ficara assim depois de uma corrida, mas com a pressa nem me lembrara da minha própria magia.
 Abri a porta de carvalho pesado com brusquidão, fazendo com que a velha ama se sobressaltasse.
 - Saia! – Ordenei, num berro, olhando-a.
 Ela ficou apreensiva, mas recuou sob o meu olhar e saiu apressadamente.
 Dirigi-me à criança, tentando vencer o acesso de lágrimas e a dor que me assolavam no segundo em que a vi. E que vi os seus cabelos loiros e luminosos e a cara perfeita em forma de coração.
 - Nneida – Comecei, ajoelhada à sua frente e com as mãos nos seus ombros. Os seus olhos encontraram os meus, provocando-me um espasmo, revelando um imenso conhecimento. Pareciam mais velhos do que ela – Tens de fugir. Agora. Eu sei que sobrevives. Atravessas este corredor e corres, sem abrandar, sempre pelo do centro. Quando chegares lá fora, contorna o cadafalso e segue na direcção oposta. Foge para a aldeia mais próxima.  Ela acenou, como se tivesse compreendido tudo, e correu, deixando-me com os braços suspensos no vazio. Fora-se. A minha única memória fora-se. Deixei escapar uma única lágrima silenciosa, antes de quase me esbofetear por isso e me levantar. Tinha algo a fazer a seguir.

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