Transilvania Season - Ep 14, Elizabeth
Afinal de contas Beth se via frente a frente àquela loira de que todos falavam, nada parecia tão real como todos pintavam ao longo dos vários séculos. Era apenas mais uma, dentro de tantas outras loucuras de Gustav. E seria uma honra torturá-la, sentir cada um dos seus ossos arderem sobre os seus dedos.
"This was Supposed to be Painfull…" by Elizabeth Wood
«Ultraje! Ultraje!» Ressoava-me na cabeça.
Sim, pois.
De certa forma, até me satisfazia o olhar de gozo do
mosquito à minha frente, achando-se tão importante e imponente ao falar com
Gustav, mas mal conhecendo o seu destino, se alguma vez passa-se pelas minhas
mão, já manchadas pelo sangue daqueles que agora gritavam nas profundezas do
castelo ou pelos que já não possuíam vida, e estavam silenciosos debaixo da
terra que lhes cobria as cinzas.
A raiva parecia perpassar Gustav, como uma espada que
repousara várias horas sobre o fogo e se lhe espetava no coração – Ou por entre
as pernas, vá-se lá saber onde é que os homens têm a sua dignidade.
No entanto, não deixava de me sentir ofendida com tais
comentários, pois estes atingiam-me, como pertencente ao grupo com o qual ela
se deparava, inflamando-me por dentro e tornando quase irresistível deixar as
brasas dentro de mim contidas fazerem a sua justiça – Cruel e fria (ou quente,
não interessa realmente), como a morte.
Tinha estado absorta nos meus pensamentos, e não ligava
agora à discussão passiva que se dava defronte dos meus olhos.
- Não necessito de me alimentar – Dizia ela, levantando-se
com toda a sua dignidade – Mas agradeço a tua oferta!
Gustav estava um tanto ou quanto vermelho, como só ficava
quando discutia com ele – E nós éramos assim mesmo: tínhamos uma relação de
ódio-manipulação-necessidade que nos mantinha juntos, isto porque necessitávamos
um do outro e pensávamos de forma parecida.
- Espera! – Gritou. De imediato, vários vampiros encorpados
cercaram Sheftu – Não posso permitir que escapes impunemente! Elizabeth, leva-a
contigo e faz o que tens a fazer.
E chegara o meu momento!! Obrigada, obrigada e muuito
obrigada, por me darem uma razão razoável para ter de estar aquele tempo todo
de pé.
- Pois, muito bem, farei o que me comanda com todo o agrado!
Bah! A pedido de Gustav, era assim que falava em cerimónias
importantes, embora essa atitude me irritasse. No entanto, não me parecia boa
ideia desafiá-lo depois de ter sido tão agredido. Isso seria ficar contra ele,
humilhá-lo mais, desarmá-lo mais, mostrar que não tinha poder nem perante os
seus… Bah! Súbditos – E malditos sejam aqueles que pensam que o sou – E tomar o
partido dela.
Tinha noção de que o meu coração batia descompassadamente,
cheio de adrenalina e emoção, assim como curiosidade, e os meus olhos
brilhavam.
Avancei lentamente, mas, no entanto, um gesto de Gustav
travou-me.
- Gostava que o fizesses na minha presença, aqui mesmo, caso
não te incomode ter plateia – Depois virou-se para o resto dos espectadores –
Todos vós podeis, agora, sair, damos o festival por adiado. Ficaremos apenas
nós os três por aqui.
Não me incomode? Devia estar a brincar! Ele sabia bem que
não gostava que ninguém me observasse quando fazia algo tão profundo. Embora
não me importasse com humanos simples ou vampiritos da treta, não era estúpida
ao ponto de pensar que a mulher diante de mim era só mais uma, pois sabia ter
mais capacidades do que isso.
Não era medo de falhar, era apenas uma questão de
privacidade – verem as minhas torturas impedia-me de me concentrar, deixando-me
desinibida.
- Por favor, sê branda com o corpo dela, eu quero que ela
sobreviva.
O quê? OK, se eu ouvira Gustav dizer aquilo, o mais provável
é que estivesse a dormir. Depois do que ela lhe dissera, ele ainda a queria
viva? Patético, ridículo, estúpido, idiota, completamente sem sentido… Mas não
ia provocar mais discussões. Eu não tinha paciência para birrinhas do Gustav.
- Como pode me pedir para ser branda num ser como ela? –
Deixei que a tristeza que isso me provocava se apoderasse de mim, dando à minha
voz um tom abatido… No entanto, os meus olhos fitavam-no intensamente, tentando
compreender… O Afecto? Hum… Isso não era coisa que eu compreendesse.
- Eu não te peço, Elizabeth. É uma ordem – Estremeci
ligeiramente, e fitei-o ameaçadoramente, com a recordação da discussão anterior
a carregar-me mais o olhar furtivo, enquanto ele se sentava na sua cadeira,
retribuindo-me um olhar sereno de “Eu-Sou-Todo-Chefe”… Bem, o meu olhar dizia
uma coisa mais do género “Eu-Vou-Dar-Te-Um-Enorme-Pontapé-Na-Cara”… - Podes
começar quando desejares.
Fitei-o mais uma vez, mas resignei-me e decidi-me a falar-lhe
depois. Desafiar um Aliado é frente de um inimigo mostra fraqueza. Eu sabia bem
disso.
O meu olhar era sarcástico, de desafio, quando me aproximei
dela.
Erguida a toda a sua altura, com os cabelos loiros e flutuar
levemente à sua volta, os olhos azuis a brilharem na minha direcção e os lábios
a retribuir, com um esgar arrogante, a confiança que eu sentia – Não que isso
me abalasse… Eu tinha visto muitos assim, e acabaram todos mortos, posso
garantir.
Não precisei de agarrar a pulseira fina que tinha pendurada
no pulso, marca de que o fogo me pertencia, e de que eu lhe pertencia a ele,
para saber que lá estava. Ela queimava-me a pele, no entanto, não me provocava
dor alguma – Tal e qual como se estivesse fundida em mim. E assim era, entre
mim e o fogo, que ironicamente me escolhera depois da minha mãe jazer morta
numa fogueira – Estávamos fundidos num só, e sustentávamo-nos mutuamente.
Mais ainda naquele momento, em que ele parecia retribuir a
minha excitação, emitindo um brilho vago na minha mão direita, e fazendo-me
arder por dentro. Ser consumida lentamente por um fogo escaldante, que não me
lesionava, mas me tornava mais forte –E não era só o facto de estar assim que
me provava que ele ardia dentro de mim. Eu tinha consciência de que ele estava
reflectido nos meus olhos e na tatuagem cor de carvão que eu tinha na anca,
surgida por obra de uma arte que eu não conhecia, mostrando o luto e a raiva
que eu sentia por tudo o que acontecera àquela que sempre fora a minha parente
mais chegada, a única que eu amara, pois ela fora morta muito cedo, cedo
demais, e eu não tivera tempo de me tornar em ninguém, para formar aquilo em
que me tornaria, pois foi muito cedo para mim, e muito cedo para ela.
Memórias do passado… Memórias que me incitavam a andar em
frente, de cabeça erguida, e a enfrentar aquela que me olhava como que num
desafio.
-Sheftu, não é? – Perguntei, ao chegar perto dela – Deves
ter consciência de que és verdadeiramente importante, não me interessa saber o
nome dos reclusos… Apanhados… Como moscas numa teia, moscas cobardes e
demasiado fracas para fugir da teia… E depois disso, vão sofrendo e sofrendo e
sofrendo… Até que “puff”! Desaparecem no meio das ondas da loucura, resumidas a
nada mais do que animais – Incuti veneno nas palavras, que sussurrava prolongadamente…
Ela não reagiu, não me tentou bater, e não me respondeu, mas manteu o mesmo
sorriso trocista.
Ergui as sobrancelhas, a sorrir, com a cabeça inclinada,
fingindo tentar compreende-la.
Quando tornei a inspirar para poder falar de novo, fui novamente
interrompida por ele.
- Chega, Elizabeth! Não te chamei para falares.
A raiva percorreu-me o corpo, estendendo-se a cada
centímetro de mim.
Rodei, lentamente, na sua direcção, de punhos cerrados. O
olhar ainda a flamejar na sua direcção, cravado no seu.
- Acho que vou precisar de falar… convosco –
Sibilei a última palavra.
Depois disso, virei-me de novo para a minha “presa”, que
mantinha o mesmo ar, de certa forma irritante.
- Prepara-te. – Murmurei.
- Eu dar-te-ia o mesmo conselho. – Retorquiu.
Não respondi, mas avancei mais na sua direcção. Ela não se
moveu. Também não teria hipótese.
E foi aí que me concentrei. Concentrei-me no fogo, nas
ordens que tinha de lhe dar. E ordenei-lhe que as suas mãos ardessem como se
estivessem no interior de uma fornalha acesa à muito, mas que continuava sempre
viva.
Ordenei-lhe que cada uma das suas gotas de sangue entrasse
em combustão, que as suas veias se incinerassem e acabassem por desaparecer,
deixando apenas o sangue… Ela estaria bem, os seus órgãos estariam bem, porque
eu fiz por isso.
No entanto, algo correu mal com o fogo.
Porque ele não a atingiu, ela não se contorceu de dor, não
berrou, mas continuou de pé, a fitar-me sarcasticamente.
- Elizabeth? – Perguntou Gustav. Sentia um certo interesse
na sua voz.
Mas tentei de novo. Desta vez, deixei que todo o seu corpo
ardesse…
Nada.
Nada.
Nada.
Inútil como despejar-me um balde de água para cima à espera
que eu me apagasse.
- O que é que se passa? – Murmurei, fitando as minhas mãos.
Não me interessava. Desta vez, o corpo que ardesse. Ela que
morresse. Ninguém me iria desafiar.
Jamais.
Chamei o fogo, o fogo de todas as coisas vivas, o fogo de
todas as coisas mortas.
O fogo que existia em mim.
O fogo que consumira a minha mãe.
O fogo com que eu matara e torturada durante quase todos os
meus nove séculos de existência.
E soltei-o sobre ela.
Deixai que as sombras e o medo se abatam sobre os corpos
fétidos daqueles que tanto mal te infligiram… Deixai que sofram, como aquela
que te antecedeu sofreu… Deixai-os sofrer tanto que desejem a morte… Dá-lhes um
gosto dela, mas depois tira-a… Condena-os a viver para sempre com o assombro do
passado… Mantém-nos vivos, só para que desejem morrer… E depois tortura os
outros, aqueles que durante todos os próximos séculos torturarem a matarem…
Ajuda-me, junta-te a mim! Deixai o mal consumir-te… Ele dar-te-á mais poder, eu
dar-te-ei mais poder, e ambos poderemos conquistar aquilo que nos pertence…
Estas foram as exactas palavras que Gustav me dirigira,
incitando-me a matar e a torturar aqueles que tinham capturado e morto a minha
mãe… Eu passara um ano a matar e a torturar populações, destruíra Aldeias e
cidades… Só por estar furiosa, por odiar os homens e aquilo que me haviam
feito… E depois surgira Gustav, que me pedira que me juntasse a ele e às suas
hostes, e que com ele dominasse todos os que ousassem desafiar-nos… E eu fora,
e ainda não me arrependera da minha escolha. Sabia que fizera o correcto, pelo
menos para mim, e não ia mudar isso.
Então, com aquelas palavras ainda a ecoar na cabeça, as
palavras que me instigaram a juntar-me a ele, a ceifar vidas com ele, libertei
tudo o que juntara para cima dela, deixando o fogo lavrar a sua vida…
Abri os olhos, na esperança de encontrar um montinho de
cinzas e um Gustav furibundo…
Mas não, ainda ali estava, o mesmo sorriso, e nem um cabelo
fora do lugar.
Apeteceu-me dar-lhe um murro, poderia ser que isso lhe
doesse.
- Fascinante. –Murmurou Gustav, levantando-se e percorrendo,
em largas passadas, o espaço que nos separava. Depois andou à nossa volta,
devagar, com um ar assombrado. – Quem diria, Ein? Elizabeth Wood, incapacitada
pelos poderes incríveis de Sheftu Núbia…
- Não foi ela – Sibilei, a tremer de raiva – Ela seria
esmagada como uma borboleta. É algo que ela tem, que ela possui… É algo que lhe
foi dado por alguém, e contém um enorme poder.
Eu sabia-o, porque algo em mim o dizia. Eu tinha um apurado
sexto sentido, ainda mais apurado do que o normal das bruxas… E isto era fácil
de compreender, porque eu desejava ouvi-lo… A razão do meu fogo ter sido
impedido de lhe tocar… Mas o quê? Era a pergunta ainda pendente, que balançava
de um lado para o outro na minha mente sufocada pela raiva, pela loucura e pela
frustração.
- Já acabámos? – Perguntou ela, num tom visivelmente
aborrecido.
O meu olhar faiscante pousou nela e, decidida a descobrir o
porquê daquilo, dirigi-lhe umas últimas palavras.
- Tu não sei, eu já. – Depois sai, calmamente, do salão,
como se nada tivesse acontecido.
O dia não me estava a correr bem…
Sentei-me na borda da cama nova, a fitar o tecto de pedra…
Por que raio é que não podiam limitar-se a deixar-me fazer as coisas à minha
maneira? Era só fazê-la sofrer, porque é que não dava? E por que é que ela
viera, se só servia para não se deixar abalar? Ah, eu odiava-a, quase tanto como
odiava Gustav por tê-la trazido.
E por ter mantido Neida ali… Neida… Teria de falar com ele
sobre ela, sobre o porquê de ela ainda lá estar… E de ser assim… A sua imagem
dava-me arrepios, apetecia-me matar alguém com o sofrimento que aquilo me
causava…
Bem, tecnicamente, tenho entrada livre para matar quem eu
quiser…
Compus o vestido, quando me levantei para sair.
O caminho até à Cave era longo mas, no entanto, nada difícil
para mim de percorrer – E eu não ligava ao cansaço, porque a adrenalina e
ansiedade já me queimavam por dentro…
Entrei no primeiro compartimento que vi, fétido e imundo, e
agarrei quem lá estava dentro: Uma mulher, com não mais de vinte anos, com o
cabelo castanho desgrenhado e comprido e a cara suja de terra.
- Não! Por favor, não! – Ouvia-a gritar. Aquilo só me dava
mais prazer…
Arrastei-a pelo corredor, enquanto escutava os seus gritos
como uma suave melodia. Cheguei à sala da ponta num instante.
Ouviam-se mais gemidos no corredor, até alguns insultos, mas
todos eles eram débeis, fracos e possuídos pela loucura.
Olhei os pés da minha vítima, agora ensanguentados pela
resistência que oferecera. Ia começar por ai.
Passei um dedo pelas grandes feridas, enquanto ela soltava
um grito acutilante… Passei o mesmo dedo pela língua… Quase que podia sentir a
loucura, o instinto animal… Mas também a dor, o sofrimento pleno que os meus
dedos em brasa lhe haviam provocado… Não, não era vampira, nem gostava de
sangue, mas aquilo parecia-me diferente… Alterado. Era assim com o sangue de
todas as minhas vítimas.
- Calma – Sussurrei, tocando-lhe a face com uma mão a ferver
– Respira fundo, Hoje ainda tem um longo caminho a percorrer.
Apertei-lhe os braços entre as mãos brancas, penetrando-os
como se as minhas mãos tivessem agulhas… Fiz o seu coração estremecer,
presentear-me com o som do seu sofrimento, e depois queimei-o, lentamente. Os
gritos da mulher aumentavam de volume e, nas suas celas, os outros guinchavam,
em pânico.
Com uma unha comprida, premi a sua garganta, fazendo o
sangue escarlate jorrar da linha fina que traçava… Inundar-me as roupas,
inundar-lhe as roupas… Eu costumava ser graciosa, não acabava suja, costumava
fazê-lo de forma a permanecer sempre limpa… Mas os meus procedimentos eram
assim mesmo quando o desejo de morte e sofrimento ultrapassavam a impressão que
queria dar. Não havia nada gracioso na forma como lhe fazia os olhos
tornarem-se bolas flamejantes, enquanto fazia as suas roupas arder… Mas ainda
assim lhe permitia respirar e viver, ainda que ela não quisesse que assim
fosse.
Fiz a minha unha, já de um vermelho brilhante penetrar-lhe a
garganta nesse momento, queimando e incinerando tudo à sua passagem.
Ela estremeceu, gritou e os seus olhos raiaram-se de sangue.
Com a outra mão, rebentei os vasos sanguíneos. Ceguei-a, enquanto mais e mais
sangue jorrava dos seus globos oculares… E não consegui resistir à tentação de
lhe arrancar, a sangue frio, um deles.
O grito que se seguiu foi abafado por um tremendo
gorgolejar, quando eu a deixei, finalmente, morrer.
A sua cabeça tombou, pesadamente, enquanto o sangue saia da
sua boca imóvel.
Libertei o globo ocular que ainda segurava numa mão,
deixando-o rolar alegremente pela sala.
Depois disso, compus o vestido e o cabelo, virei costas ao cadáver, e
segui pelo corredor.
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