Transilvania Season - Ep 7, Sheftu
Ainda aprisionada a um passado que procurara por tanto tempo.
Que ironia é essa? A sua única família – Kiya, razão de cada batalha travada –
agora era o seu pior pesadelo. Velhas guerras, antigas ambições e constantes
loucuras. Qual seria o futuro traçado? Talvez a verdadeira morte seria uma
bênção.
"Not A Dream, Not The Death" by Sheftu Nubia
Uma leve batida na porta se fez ouvir, recordando-me
novamente tudo o que tinha acabado de acontecer. Não me importava quantas horas
se tinham passado nem o que me iria acontecer. Por mais que tudo ficasse o pior
possível, eu ficaria aqui. Firmeza era o que eu mais tinha, não ia morrer por
mais que o desejasse alguma vez nesta minha morte eterna.
- Posso entrar? – Ouvia eu, enquanto divagava algures pela
minha mente. Sua voz era serena, apesar do corpo morto do meu lado, não parecia
fazer-lhe qualquer impressão.
Ergui-me para fitá-la, aquela mulher que ainda há uns tempos
estava aterrorizada, num canto deste quarto, com receio de mim. Seu corpo
estava ainda mais maltratado do que da outra vez, conseguia-se observar bem a
mancha que seu braço tinha, por mais que ela a tentasse esconder.
- Sim, claro... O que te aconteceu? – Perguntei,
dirigindo-me para a cama, caindo nela com o meu corpo morto e ficando assim,
quieta.
- Preferia não falar sobre isso... Quem é? – A sua pergunta
fez com que meu olhar seguisse o dela, observando o olhar ainda aberto, a
expressão ainda aprisionada no momento em que algo aconteceu. Gostava de saber
ao certo o que tudo isto foi, o que eu me tornei...
- É apenas um corpo. Nada de importante. – Respondi sem
vontade.
- Alimentaste-te dele? – A sua voz agora adquiria um tom de
curiosidade extrema, o que me irritava de um certo modo. Pensar em Ian como uma
simples presa me agoniava, principalmente quando sabia que nada disso era
verdade.
- Não. Mas acho que deves chamar alguém para que venha
tirá-lo daqui.
- Vou já tratar disso. – Respondeu-me com uma leve vénia,
saindo.
Abri as portas da janela e saí para a varanda, sentindo os
raios do sol penetrando sobre a minha pele, aquecendo-me um pouco, fazendo com
que me relembrasse de quem eu mais desejo, daquele que agora estava livre, que
jamais seria usado pelo seu pai. Eu desejava senti-lo, queria estar novamente
sobre os seus braços, ver aquela força do seu olhar sobre o meu e perder-me
sobre todos aqueles sentimentos que vivíamos em conjunto. Mas isso agora era
passado, tinha outras coisas para fazer, algo bem mais importante.
Saltei da varanda e observei a paisagem em volta, senti a
pulsação de Kiya aproximar-se rapidamente, como se eu alguma vez usasse os
momentos diurnos para escapar. Estava fraca, o que faria com que qualquer ser
ligeiramente superior à força humana me conseguisse combater. Eu bem sabia que
ela não era a única filha de Gustav, haveria muitos mais algures por esta
floresta à espera de receber o seu prémio pela tentativa de fuga que eu alguma
vez fizesse.
- O que fazes aqui? – Perguntou-me irritada mal se aproximou
de mim.
- Nada. – Disse-lhe sem dar muito caso ao que ela pudesse
dizer, iria dar tudo ao mesmo.
- Não penses que tudo isto vai ficar assim.
- Faz como quiseres. Acredita no que quiseres... A irmã que
eu tive não existe mais, por isso tanto faz. – Disse-o num tom de desabafo,
correndo rapidamente para o interior do habitual castelo. Frio, sangrento e
especial como sempre...
Dirigi-me para o quarto onde me tinham colocado, na
tentativa de puder descansar de emoções por momentos, uma tentativa dada como
falhada logo de início. O corpo permanecia lá, a mulher parecia esperar por mim
perto da porta de entrada.
- O que fazes aqui? – Perguntei-lhe, tentando entrar, sendo
travada por ela.
- Desculpa, mas não podes entrar.
Empurrei o seu corpo frágil da minha frente e entrei no quarto,
aproximei-me do corpo e me ajoelhei perto da sua face. Seus olhos ainda estavam
abertos, parecia que olhava para mim, perguntando-me porque estava agora morto,
o que eu tinha feito para ficar assim. Eu própria me perguntava o mesmo, sem
saber ao certo o que realmente pensar, limitando-me apenas a fechar os olhos,
tentando sair de mim, tentando sair do agora...
Várias tinham sido as semanas em que se tinha tornado uma
tormentosa rotina permanecer sempre em redor daqueles que nos usavam como
objectos, sem dó nem piedade. A dor não era nada mais além da dura realidade de
cada dia, perdendo-se algures sobre as torturas que sentia a alma.
Eu um dia, enquanto humana, sentira o que é ser-se um
simples objecto. Mas sempre me habituara a que tudo fosse assim, pois era
treinada para ser a mulher de um faraó, servir-lhe até a nossa alma caso ele o
desejasse tornava-se normal para uma pessoa como eu. Revoltas eram fáceis de
lidar, por mais que desejássemos ou sentíssemos algo, era necessário que
fossemos uma imagem e semelhança daqueles que se tornavam nossos esposos, eram
nossos donos e nada deveríamos protestar. Pensamentos próprios eram
completamente impensáveis, principalmente para a minha mãe, que me ensinara
tudo até que aquele cretino lhe criara a ilusão, clamando assim a sua vida para
que nascesse a minha eterna tormenta: Kiya.
- Vem comigo... – Ainda me lembrava das suas palavras,
quando Gustav tinha voltado das suas habituais viagens. Nada poderia fazer a
não ser consentir, seguindo os seus passos que pareciam na altura demasiado
apressados para mim.
Por mais meses que passassem, eu não deixava de ser a
mulher do harém que ele preferia. A razão nunca realmente a soube, mas
desconfio que seja pelos traços que herdei de minha mãe. Sempre que algum dos
seus supostos ‘amigos’ regressava juntamente com ele, a primeira que os recebia
era sempre eu, tendo a possibilidade de ver a minha irmã, nem que fosse apenas
por uns momentos.
- Sheftu, apresento-te Lilith. Ela ficará no nosso
castelo quanto tempo o desejar, e caso necessite de ti, terá completa liberdade
para o desejar. Entendes? – Limitei a aceitar com a minha cabeça, fazendo uma
pequena vénia, sendo rapidamente tocada pela sua mão fria, erguendo o meu rosto
para perto do dela e sentindo o meu cheiro.
- Compreendo agora Gustav, realmente ela será um belo
espécime. – Com uma rapidez fenomenal, que continuava a fazer-me confusão,
apesar dos longos meses já de martírio, observava-me sobre todos os ângulos,
fazendo com que eu não compreendesse nada, com que eu não soubesse o que se
estava a passar. – Observa o seu olhar prepotente, a impotência que conseguimos
adquirir apenas com o olhar. Fizeste uma boa escolha.
- Creio que basta. Lilith, já sabes o que tens a fazer.
Prepara tudo. – Respondeu Gustav, deixando-me sozinha com aquela vampira.
- Só espero que não seja a sua prepotência que aniquile o
teu reino... – Uma frase que se fazia rápida e quase inaudível para mim, mas eu
a ouvira. Ainda não sabia ao certo do que falavam, a realidade é que a razão
estava no lado dela, mesmo sem me ler a mente sabia o que acabaria por
acontecer mais cedo ou mais tarde.
Seguimos rumo a algum lugar, na realidade nunca tinha
sido levada do acampamento algures no meio do deserto, por mais que não me
quisesse afastar do meu objectivo, eles me levavam para longe dela. Após alguns
meses de viagem, chegamos a um castelo que me impressionava pela sua magnífica
paisagem em volta, tanta beleza num só local era algo de inacreditável.
- Esta será a tua casa pelos primeiros tempos do teu
crepúsculo, a noite passará a ser não apenas minha, mas nossa. – Um ar de
visível alegria se reflectia sobre o olhar de Lilith, entrando sobre os portões
do castelo que se abriam e levando-me juntamente, segurando atentamente na
minha mão.
Fomos rumo a um enorme salão, alguém nos esperava, toda
esta classe e magnitude não me surpreendia, mas a beleza de tudo isto era algo
de diferente ao que eu me habituara. Não que o meu doce mundo egípcio não fosse
belo, era a diferença que marcava este lugar.
- Seja bem-vinda minha senhora. – Respondeu um homem,
fazendo uma leve vénia.
- Ian, podes mostrar o castelo à Sheftu? – Perguntou-lhe
Lilith, saindo mal recebera uma resposta afirmativa. Ele começara a
aproximar-se lentamente, fazendo-me recuar um passo, querendo atacar caso fosse
necessário, provocando-lhe uma gargalhada.
- Não é de mim que necessitas de fugir. – Dizendo isto,
parou por uns momentos e estendeu a sua mão. – Dá-me a honra de lhe mostrar
onde lhe ficam os aposentos?
Permaneci calada, quieta. Não sabia se deveria confiar
nele, se haveria alguém no mundo em quem eu pudesse confiar. Dei um passo em
frente e ele sorriu, começando então assim a caminhada pelo castelo.
- Não me temas a mim, estou na mesma situação que tu. –
Começou a desabafar sobre o enorme silêncio que tinha caído sobre nós. – Daqui
a uns meses as nossas vidas terminarão.
- Como dizes? – Questionei-o sobressaltada.
- Não sabes a que vieste? – Questionou-me, tentando
entrar nas profundezas do meu olhar com o seu. Limitei-me a negar com a cabeça,
à espera que obtivesse alguma resposta. – Vieste aqui para morrer, mas ficarás
pelo mundo muito tempo depois da tua morte.
- Mas como?
- Ainda teremos muito tempo para mais detalhes. –
Respondeu-me seguindo em frente, abrindo assim umas portadas e dando-me passagem
para o seu interior. – Este será o teu lugar sobre esta casa, tens os teus
trajes sobre a cama. Quando estiveres pronta, então seguiremos para a cidade
mais próxima, para que comeces a saber o que nos espera.
Meus olhos se abriram, enquanto observava a sua sombra
desaparecer sobre a porta. Segui em frente, fechei-me e reflecti tudo isto, a
minha vida iria ter um fim. Não iria baixar os braços nem recuar sequer um
passo, havia algo que teria pela frente, até que um dia eu conseguiria ter
novamente a minha irmã sobre meus braços, era a única coisa que tinha
importância.
Essa fora a hora que meu destino tinha sido traçado,
tornar-me-ia num ser morto, sobre o peso da salvação da minha única família:
Kiya. Separaram-me das restantes escravas, isolaram-me numa pequena sala e
alimentavam-me não apenas com o habitual, o sangue começava a fazer parte do
menu, intrigando-me totalmente. Mas a força nunca cessara, nunca deixara que
meus objectivos se perdessem, nem quando realmente me transformaram.
Eu me recordo bem desse dia, como se os milénios nem sequer
tivessem passado. Toda a esperança que tinha esvoaçado sobre a escuridão que me
cercava decidiu inundar-me de novo, ao de leve, recarregando as minhas
energias. O mesmo que agora permanecia deitado no chão morto, mais do que o
habitual.
Sabia bem porque era esta recordação que me surgia e não
outra, a primeira vez que nos tínhamos conhecido, o início da nossa demanda
pela liberdade e justiça. As suas emoções tinham sido a sua morte, o sentir
trouxera-lhe a derrota. Doía-me por dentro, afinal era aquele que esteve mais
próximo sobre as horas em que tudo começou. A sua traição o tinha morto para
mim, ainda não sabia como o tinha feito, mas a realidade é que agora não havia
nada nele que existisse mais.
Aproximei a minha mão sobre a dele, fria como sempre,
desejando que nada disto tivesse acontecido. A realidade era bem mais real do
que os desejos que me assolavam. Meu olhar se abriu quando senti as minhas mãos
serem apertadas pelas mesmas mãos mortas que eu tinha aniquilado, seu rosto já
se encontrava perto do meu, observando o meu olhar como da primeira vez.
- Curioso... O que te fizeram? – Perguntou-me, demonstrando
uma enorme preocupação.
- Eu não te... – Seu dedo calou meus lábios, dirigindo
rapidamente a sua outra mão para a minha face, tentando acalentar as lágrimas
que tinham surgido pouco antes do seu despertar da morte.
- Não sei como o fizeste, mas não estava completamente
morto. – Sorriu com se duma piada se tratasse, prosseguindo a sua linha de
raciocínio. – Todo o meu corpo estava imóvel, apesar de conseguir ver tudo e
ouvir-te, não conseguia sequer mexer-me para te dar uma tareia.
A sua gargalhada chamou à atenção quem passava, Gustav
entrou de rompante fazendo com que Ian se erguesse com rapidez na tentativa de
não criar velhas guerras.
- Não estavas tu morto? – Questionou-lhe enraivecido.
- Não foi desta vez que ela deu cabo de mim... – Respondeu,
saindo para o corredor. – Talvez para a próxima...
- Não haverá próxima! – Exclamou Gustav. – Estás banido
daqui. Não permito que te aproximes mais dela, ouviste? Afasta-te do castelo e
não voltes.
- Não será correcto fazer-me isso depois de toda a ajuda que
te dei.
- Ainda tens sorte que não faça de tudo para que te cacem
até à verdadeira morte. Agora vai, já não és bem-vindo.
O olhar de Ian alcançou o meu com uma enorme culpa, como se
agora se arrependesse de tudo o que tinha acabado de criar. Entregara-me nas
mãos de Gustav e agora seria banido de todo o castelo. Não lhe tinha perdoado a
traição, jamais o perdoaria pelo que me tinha acabado de fazer.
- Com que então ele estava morto... – Inquiriu-me Gustav,
depois de estarmos realmente sós, como em outros tempos.
- Assim o pensei, mas na realidade estava enganada.
- O que lhe fizeste? – Perguntou-me, aproximando-se.
Rapidamente me ergui, tentando afastar-me o mais possível daquele crápula.
- Nada.
- Não acredito que me vás omitir o que lhe fizeste. – Sorriu
subtilmente e continuou. – Tu deverias estar morta, desde que Kiya tinha-te
mordido. Porque continuas tu ainda sobre esta terra?
- Não sabia que a tua curiosidade era assim tão grande ao
ponto de arranjares um esquema para que ficasse aqui presa.
- Sabes muito bem porque estás aqui. – Muitos seriam os anos
que tinham passado depois da minha fuga, mas o seu olhar continuava sempre o
mesmo, o desprezo era imortal, tal como nós os dois. E o meu desprezo por ele
crescia a cada nova aurora.
- Já tens Kiya, não necessitas mais dos meus préstimos. –
Respondi sem qualquer sentimento, a minha irmã, por mais que odiasse a ideia,
tinha morrido na hora em que ela se tinha juntado a seu pai.
- Não é ela que eu desejo. – Confessou, aproximando-se ainda
mais. – É a ti.
- Não importa minimamente quem usarás e o que farás para
tentares ter o que desejas. Apenas há uma coisa que te tenho a dizer: não terás
jamais o que desejas.
- Então porque consegui eu trazer-te até aqui? – Disse com
um olhar triunfante.
- Só porque me tornaste tua prisioneira não significa que me
terás. – As minhas palavras serviam-lhe como punhais afiados sobre a sua pele,
dando-me uma sensação profunda de satisfação. Odiava-o até ao infinito, nada
mais me alegrava ao saber que tudo o que diria encaixava sobre as suas sequelas
do passado. Ele ainda temia os meus olhos, o meu olhar seria a minha melhor
arma enquanto o meu corpo enfraquecia sobre as mãos de Pan. - Sabes muito bem
que isso é completamente impossível.
- Vejamos o que acabará por acontecer... – Seu tom confiante
não me abalava, no passado eu tinha alguém do meu lado para a minha libertação.
Mas agora não necessitava disso, eu estava livre, independentemente do local e
da circunstância. Rapidamente saiu do quarto, sendo as portas fechadas. Estaria
presa, a segurança iria ser maior, esperavam a qualquer momento que eu
escapasse, eu tinha a certeza disso.
Quando
menos esperassem, quando voltasse a reaver as minhas forças, tudo iria mudar.
Caí uma vez quando ainda era um ser humano, caí novamente quando Kiya deixou-me
para se entregar de corpo e alma ao seu pior inimigo. Não haveria nenhuma
terceira vez, jamais haveria uma terceira vez.
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