Inverness Season - Ep 36, Sheftu
Todos os seus ideais estavam em mutação. Desde aquele
pequeno encontro com Trish que ficara afectada de uma forma que jamais gostaria
de sentir. E Eric sabia, como ela detestava a capacidade que ele tinha de ler
mentes! Parte do seu passado surgira, tão rapidamente como se fora. Era tempo
dela seguir o seu caminho. Sem Eric. Sem emoções.
“Annoying To Be” by Sheftu Nubia
Por mais forças que tivesse em controlar a minha mente, era
quase impossível não ouvir as suas pulsações enquanto nos seguia. A calma que
parecia ter na sua total loucura a fazia ser uma inimiga que me fazia bastante
confusão... Principalmente pelo seu prémio, como se alguma vez na vida eu fosse
permitir tal coisa, por mais estúpido que ele fosse, por mais irritada que
estava com ele: me preocupava a ideia de puder perdê-lo.
A verdade é que a irritação tinha-se esfumado completamente,
a raiva que me tinha cercado e feito duvidar de tudo isto que somos. Me fez
morrer, fez-me morrer... Dúvidas são coisas que eu não admito que me aconteçam,
e a raiva apodera-se de mim, me faz sentir aquilo que sempre senti: me odeio
pelo que sou sem ele, odeio tudo o que sinto.
Ilusões são coisas que não podem existir em mim, pois
tempestades acontecem e cataclismos se formam. Controlo é coisa que não tenho
quando minha mente ferve por este fogo que me faz ser aquela que nunca desejo
ver. Uma força da morte, ou talvez até a própria morte, depende de como me
chamam. Não me importa minimamente o que os outros pensam, desde que me observe
ao espelho e nunca duvide de qualquer coisa que sinto.
- Sabes que eu consigo compreender o que pensas? – Apontou,
sussurrando ao meu ouvido, abraçando-me por trás, quando finalmente tínhamos
entrado no quarto.
- Não tem importância o que possas saber ou não. – Respondi
amargamente.
- Para mim importa. – Assegurou.
- Não sei se é a realidade o que dizes.
- Nem tu acreditas no que estás a tentar dizer. – Seus
lábios tentaram desorientar-me, ao começarem uma demanda pela minha pele fria
do pescoço, fazendo com que minha cabeça caísse para trás, deixando-se envolver
pelo nosso momento, pedindo para que continuasse, que me mostrasse o que era
real, o que era nosso.
Meus sentidos captaram uma sensação de renovação de paz, em
que nada nem ninguém me poderia tirar, nem ódio pelo que sinto. Voltei-me para
ele e beijei-lhe efusivamente, depositando toda a minha ferocidade nele,
vivendo cada segundo com toda a intensidade possível, sentindo cada toque como
se fosse o último, perto de uma despedida que se parecia aproximar.
Mas jamais, Trish não levará a melhor sobre mim. Porque eu
não sou a vida, não sou a alma que habita um corpo. Minha morte é a destruição
daqueles que provocam raiva em mim, daqueles que se dão já como mortos.
Meu corpo se ergueu sobre chão, sendo levado para a cama
ainda feita, que se incendiaria naqueles momentos em que nossos corações
efervescentes se uniam numa só voz.
Rapidamente seu corpo ficou imóvel, as horas teriam
certamente passado e agora ele estava, finalmente a dormir... Um enorme
silêncio que se mantinha cativo sobre os meus pensamentos, tentando talvez
captar algo que há muito parecia distante.
O dia começava a querer surgir novamente, ouvira Carmen a
sair do quarto mas havia algo que permanecia lá – Dean, pensei.
Segui com rapidez até lá, não seria muito tempo, mas era o
suficiente. Entrei pelo quarto dentro, vendo-o tomar logo uma posição de
defesa, voltando ao normal ao ver que era eu e sorrindo.
- Ah, és tu...
- Pois sou... – Respondi-lhe sorrindo também, mas mais baixo
para que Carmen não nos captasse. – Temos é de falar mais baixo para que ela
não saiba que estou aqui contigo.
- Ela não pode saber? – Perguntou-me curioso.
- Ninguém pode. – Respondi suspirando. – Para quando podes
tratar dos detalhes? Tenho certas coisas que nos podem ajudar a matá-la quando
seguirmos viagem, e gostaria que fosse o mais rápido possível.
- Já comecei a tratar disso, não demorará muito... Sabes
que... – Começou por dizer, tendo logo de seguida segurado a sua boca sobre as
minhas mãos e tentando explicar que ela voltava. Sua cabeça afirmou, e sorrimos
mais uma vez como despedida, voltando para o meu quarto antes que ela
conseguisse descobrir tudo.
Permaneci um pouco ligada à conversa entre os dois, ela
pensava ter-me visto a sair de lá, mas pelo que parecia o Dean tinha tentado
mostrar de que era algo da sua imaginação. Não teve muito sucesso, mas sempre
acalmou a mente da Carmen pois o assunto morrera ali.
Um som ecoou sobre a minha mente, um telemóvel que há
bastante tempo parecia ter sido morto, começava agora por querer florescer nas
cinzas. Corri rapidamente para o conseguir alcançar, sendo seguida por Eric que
parecia ter acabado de acordar, talvez fosse do barulho... Pelo menos era o que
eu esperava que fosse.
No ecrã aparecia anónimo, apesar de ter consciência de quem
poderia ser... Aquele número apenas tinha sido conhecido por um certo grupo de
pessoas, pessoas de um passado não tão longe...
- Sim. – Respondi, dirigindo-me para a poltrona e
sentando-me, seguida de Eric, que se sentava na cama, fitando-me e tentando
captar cada traço de conversa que poderia haver.
- Sheftu? – A sua voz permanecia a mesma, fazendo-me
recordar os momentos em que passamos juntos. Eric observou-me irritado, mas
nada poderia fazer para que a minha mente o protegesse.
- Sim, sou eu. – Disse secamente, continuando a observar
preocupada o olhar rígido que permanecia perdido algures. Eric parecia estar
prestes a explodir, acredito que a sua cara fosse parecida com a minha quando a
força da mente se apodera de mim, deixando que tudo fique desfocado e apenas
seja a ira a reinar.
- Eu...eu sei...que parece invulgar... – As suas pausas
pareciam perder-se dentre a minha preocupação pelo Eric, demasiado quieto,
demasiado frigido, seu rosto demonstrava completa tensão. Esperava que a
qualquer momento tudo aquilo explodisse, mas não... Permanecia inerte, como se
estivesse morto, não fosse a sua pulsação demonstrar o seu estado, como se não
houvesse outro amanhã.
- Sim, eu estou a ouvir. Continua. – Tentei apressá-lo,
certamente quando esta chamada acabar terei que dar muito a explicar. Desde que
ele não saia que nem um louco com sede de vingança... Por mim tudo bem.
- Bem... O que eu queria mesmo...era...não sei como te
pedir...
- Desembucha de uma vez. – Começava a fartar-me desta
maçada, mas o que raio ele queria pedir-me? Eric finalmente teve alguma
reacção, levantou-se e apanhou o telemóvel da minha mão com uma expressão pouco
favorável.
- Desculpe, mas o número que marcou já não é válido. –
Disse, esmagando na sua mão o telemóvel e incendiando-o num fogo azul vivo. Eu
apenas permaneci calada, à espera que começassem as perguntas. Mas pelo que
parecia não existiam, logo ergui-me e saí, precisava de apanhar um pouco de ar
da natureza...
Quando ia a descer as escadas e abri a porta, deparei-me com
um vampiro estranho no hall de entrada, pelo que me lembrava... O seu nome
era...
- Senhor Attwood, bem-vindo à sua casa. – Cumprimentei-o com
um sorriso.
- Senhora Manen... – Replicou.
- Na realidade é Nubia. – Torci o nariz, não me sentia
minimamente habituada.
- Desculpe, não a queria ofender... É tão falada pelo Senhor
Manen que acabei por adoptar o seu nome... Desculpe a minha indelicadeza.
- Está desculpado. – Respondi, fazendo uma pequena vénia e
saindo a sorrir.
O sol ainda se sentia, apesar de a noite não tardar muito a
vir, uma nostalgia se apoderava de mim, fazendo-me sentir os seus últimos raios
com a sua textura dourada. Inspirei fundo, sentindo um cheiro um pouco sujo
para o meu corpo.
Uma mão quente tocara em meu braço me puxando para a sua
direcção e fazendo-me observá-lo rindo-se para mim. Sua pele branca contrastava
com o brilho que os raios de sol e dos seus olhos cor de âmbar, pena o seu
cabelo azul que fazia com que me fizesse rir.
- Podes largar-me agora o braço? – Perguntei irritada.
- Não até que me digas qual é o teu problema. – Respondeu-me
ele, persistente.
- Neste momento... Não é difícil, pois não? Até para um cão
como tu. – Escarneci o melhor que pude estas palavras que lhe assentaram como
um golpe forte no estômago.
- Porque tens de ser assim?
- Olha para mim, olha para ti... Acho que tens a resposta a
isso.
- A Carmen não vê qualquer problema em eu ser um
lobisomem... – Apontou.
- A Carmen é uma idiota. – Respondi, libertando-me da sua
mão e caminhando em direcção a nenhures.
- Gostava de saber o que te faz pensar assim... Nunca o fiz
para o merecer. – Agarrou novamente o meu braço, fitando-me nos olhos e
sorrindo. Parecia querer uma amizade ou algo do género, idiota.
- Não tem a mínima importância do que mereces ou não.
- Eu que achei que eras uma bela dama, agora apenas vejo em
ti um belo problema. Espero que um dia possas conseguir ter disponibilidade
suficiente para me conheceres. – Ripostou ainda esperançoso de uma possível
aliança de paz.
- Acredita que estás errado.
- Não sei como o próprio Ian pode falar bem de ti. Ele me
disse que valia a pena tentar, mas pelo que parece são coisas da cabeça dele. –
Desabafou, seguindo o seu rumo e fazendo-me segui-lo.
- Conheces o Ian? – Perguntei-me totalmente surpreendida.
- Claro, pensas que eu não tenho amigos apenas porque me
viste a sair de uma floresta? – Zombou-me.
- Não, nem por sombras. Apenas te peço um favor, não te
ponhas a falar dele nem a pensar muito dele por estas bandas.
- Não sei da razão pelo que hei-de aceder ao teu pedido.
- Talvez porque simplesmente não é um pedido. Agora cala-te.
– Ordenei.
- E posso pelo menos saber o porquê desta censura? –
Perguntou-me intrigado.
- Talvez não seja da tua conta, dá-te por contente por ter
falado contigo. – Escarneci, seguindo o meu caminho.
Sentei-me não muito longe da mansão, tinha-me
surpreendido... O cão tinha uns contactos muito estranhos, logo agora que ele
me tinha telefonado. Não tinha como saber o que ele queria a não ser ir ter com
ele. Faria as malas agora mesmo, partiria ainda hoje.
Levantei-me e corri para o quarto, escrevi uma nota sobre a
cómoda e deixei-a lá. Peguei o mais rapidamente possível em tudo o que era
necessário, mas parecia ser tarde demais, sentia alguém a fitar-me encostado à
ombreira da porta a observar-me.
- Vais a algum lado? – Perguntou-me Carmen observando o
papel sobre a cómoda, aproximando-se e lendo. – Pensas avisar assim o Eric?
- E que tens tu a ver com o que eu faço? – Respondi sem dar
importância.
- Nada, mas tenho de me intrometer quando vais fazer alguma
loucura que me faça aturá-lo com a sua loucura por ti. – Fez-me observá-la
bastante surpreendida com as palavras dela.
- Não tens nada que te intrometer. – Informei-a, com um
pouco de irritação à mistura.
- Está alguém em casa? – Ouvi uma voz
bastante conhecida, andava desaparecida por uns tempos... Mas quem é morto...
Sempre aparece!
Carmen também tinha ouvido, apesar de não ter sido audível
para um ser humano da distância em que estávamos. Rapidamente chegamos ao hall,
já lá se encontravam os restantes elementos da tribo – não poderia haver outro
nome a um grupo de vampiros e um cão.
Carmen aproximou-se rapidamente de Eric e ofereceu-lhe o
papel que eu tinha deixado na cómoda para as mãos, estas que o esmagaram e
permaneceram firmes, inertes. Eu sabia que neste momento ele estaria muito
provavelmente a observar-me, à espera de que eu encontrasse o olhar dele para
que começasse a sua tortura.
Em vez disso, olhei finalmente para a Samantha, a sua
expressão de felicidade era completamente deslumbrante, mas não fora isso que
me tinha chamado à atenção, tinha em seu quadril um braço que a sustentava –
talvez fosse o seu tão desejado Louis.
- Olá a todos... Quero-vos apresentar o meu Louis. – Disse
sorrindo, abraçando-se mais a ele e observando a reacção de toda a gente.
Meus olhos se prostraram nele, a realidade é que sua beleza
seria algo que se notaria até mesmo de longe, fiz questão de sorrir para ele
quando passou os olhos sobre mim. Talvez pudesse defini-lo como um Deus de
grego ou até romano, tinha que assumir que ela tinha um belo gosto, demasiado
belo gosto.
- Temos de falar. – Sussurrou Eric ao meu ouvido,
abraçando-me e puxando-me para perto do corpo dele e exercendo pressão para que
eu não conseguisse sair. Olhei para os seus olhos, estavam tão perto que não
consegui deixar de olhar em seus lábios, segurando na sua face ao de leve e
puxando-a...
- Parem com isso, não vêem que temos convidados? –
Interrompeu-nos Carmen sorrindo ao ver a minha expressão de fúria cruzar-se com
a dela. Sentia-se divertida, idiota.
- Eric, não podemos ter uma conversa, nós os três? –
Perguntou Samantha com delicadeza.
- Tem que ser agora? Tenho um assunto pendente... –
Respondeu do mesmo modo que ela.
- Não demoramos muito, vais ver... Não é Louis? – Disse ela,
observando com orgulho o rosto do seu amado que se dirigia a ela.
- Sim, claro... Não queremos tirar muito tempo por sua
parte, é rápido. – Respondeu, aproximando-se de Eric e de mim e esticando o seu
braço, para que ele o cumprimentasse.
- Então está bem... Apenas espero que me possa chamar por tu,
já que temos alguém em comum na família... – Disse Eric sorrindo. – Carmen,
trata de levar a Sheftu para o quarto.
- Mas...
- Creio que não te importas de me fazer esse pequeno
favor... Como os ouviste, eu não demoro muito... – Interrompeu-lhe Eric, o idiota-mor.
- Está bem, está bem... Depois acertamos contas, nós os
dois... – Afirmou Carmen, olhando para mim à espera que começasse a andar.
Sentia em todo o meu corpo uma irritação profunda enquanto
caminhava com ela atrás de mim, servindo de ama-seca. Porque raio tinha ela de
se meter onde não era chamada? Tinha por acaso alguma coisa a ver com o
assunto?
- Não penses em sair enquanto o Eric ainda não chegar. –
Disse-me sentando-se à poltrona junto da janela, observando todos os meus
movimentos, preparada para tentar travar-me a qualquer custo. Desde que
permaneça aqui é o que importa para ela, não deve ter mais nada que fazer do
que andar com estas parvoíces.
Sentei-me na cama e fiquei ali, imóvel, à espera que a morte
chegasse... Sinceramente, tinha mais do que fazer do que estar à espera do
interrogatório. Não é que fosse muito necessário já que ele tiraria tudo o que
os meus pensamentos lhe pudessem dar. Era completamente inquietante, todo este
tempo de espera, até para mim, em que os dias pareciam umas migalhas comparados
a tantos anos já passados, a tantas experiencias e torturas vividas.
O problema era esta nova situação. Amar era o real problema,
humanidade ridícula que se abateu sobre mim e me prostrou por terra,
deixando-me sentir e viver certas sensações que me relembravam outros tempos...
Tempos em que os sonhos existiam e esperanças nos faziam navegar pelos eternos
céus da felicidade.
Caso nada disto acontecesse, estaria aqui, bem e sã... Ou
simplesmente morta, devido à dentada letal cujo Eric não deveria de ter tirado
de mim. Salvou-me da derradeira morte, dando-me vida e algo mais, dando-me os
problemas que sempre se juntam a um coração que sente. Apesar de que o meu nada
mais bate, morto como sempre, mas repleto de humanidade que começa por se espalhar
por mim como veneno.
- Em que pensas? – Desviei-me dos meus pensamentos,
observando-a bastante intrigada com algo que eu ainda não sabia bem ao certo.
- Como? – Perguntei baralhada com a pergunta.
- É estranho... – Começou por falar, mas arrependeu-se,
permanecendo calada.
- Podes dizer... Eu não levo a mal. – Convidei-a a
continuar, falando suavemente e extremamente curiosa.
- Acredito que já vi bastantes vezes essa tua expressão ao
espelho... Por isso é que me questionei no que pensavas.
Mantive-me calada, fazendo com que o tempo se passasse
assim, tal como eu estava: lento e mortal. Não tinha demorado muito tempo até
que Carmen se levantasse ao mesmo tempo que Eric entrava pela porta,
deixando-me assim sozinha com a fera. Não conseguia ler pensamentos, mas a
pulsação era algo bastante útil, principalmente quando sabemos exactamente o
que se está a passar...
- Podes dizer-me o que é isto? – Perguntou-me, enquanto me
mostrava o meu papel, completamente irado com o que eu tinha feito. Nada saiu
da minha boca, meus lábios permaneceram cerrados e minha mente limpa, divagando
apenas pelo imenso vazio que se fazia sentir em mim. – Vais permanecer assim,
calada... Pois bem. Eu digo-te que não vais a lado nenhum, por mais que tentes.
- Como se me pudesses impedir. – Respondi-lhe secamente.
- Eu posso, minha querida. O problema é que eu posso... Não
te esqueças disso. – Ergui os meus olhos perante o seu tom autoritário. Seus
olhos demonstravam uma ira incontrolável, não era habitual ver tal coisa...
Muito menos quando acontecia duas vezes ao dia.
- Creio que não sou eu que tenho a alma a prémio. – Apontei.
- Pois, mas também não fui eu que estava amarrado algures
numa masmorra.
- Como se tivesses algo com isso. – Respondi-lhe, tentando
pegar no papel amarrotado das suas mãos sem tirar os olhos dos dele.
- Por acaso até tenho. – Largou o papel ao mesmo tempo que
segurava no meu punho. Tentava libertá-lo com a minha outra mão que acabou por
ser também presa pelo pulso, fazendo-nos ficar assim, por uns momentos, irradiando
fúria, dispersando-a pelos nossos corpos que se uniam sobre as suas mãos sobre
a minha pele.
Conseguia sentir a energia pulsar, sendo mesmo até circulada
entre os dois corpos, libertando as minhas presas e revoltando todo o meu ser.
Era fúria pura, ira que se fazia passar entre nós e que mesmo assim nos unia,
uma sensação não totalmente desconfortável, até nova e difícil de se descrever
ou pensar.
Como se duas almas pudessem realmente se unirem, vivendo e
sentindo o mesmo, em harmonia por um sempre sem fim. Não era fraqueza que
sentia, toda aquela força que permanecia em nós, crescendo com esta ira que nos
banhava. Algo que jamais poderia quantificar ou até qualificar.
- Isto foi...
- Único? – Perguntou-me sorrindo, libertando finalmente as
minhas mãos, sorrindo levemente.
- Sim. – Confessei.
- Mais alguma dúvida sobre a ilusão que nós os dois não
somos? – Perguntou-me, talvez tentando encontrar a própria resposta dentro da
minha cabeça. – O que vês à tua frente?
- Vejo-te a ti. – Respondi um pouco baralhada com a pergunta
dele.
- Aquela criança que salvaste cresceu. Agora estou aqui e
sei o que fizeste por mim, deixa-me dizer-te que já não sou mais nenhuma
criança... – Respondeu-me sorrindo e aproximando o seu corpo do meu, sentindo
cada centímetro da sua pele que se fazia quente sobre a minha, mesmo ainda
vestido. – Tal como podes verificar. – Sua voz tinha agora tomado um tom rouco
com uma bela ajuda dos movimentos que meu corpo fazia no dele.
- Não queres dançar? – Respondi sorrindo, à espera que
pudesse desviar as suas atenções.
- Não te lembras que leio o que pensas? – Sorriu e tentou
concentrar-se, apesar de tudo. – Como estava a dizer... Podias parar por um
pouco?
- Queres mesmo que pare? – Perguntei irónica, reparando no
efeito que lhe estava a causar com os meus movimentos.
- Nã...humm... Mas tens de parar. – Respondia-me lentamente,
tentando ganhar o raciocínio certo.
- Porquê? – Comecei por retirar levemente o seu casaco,
sendo travada pela sua mão.
- É importante. – Disse, olhando directamente nos meus
olhos, desarmando-me.
- Está bem... – Cedi, sentando-me na cama à espera do que
viria por aí...
- Bem, como estava eu a querer dizer-te antes de começares a
tentar torturar-me até que desistisse... – Sorriu, fazendo uma pequena pausa e
aproximando-se de mim, sentou-se e segurou as minhas mãos. – Olha para mim.
- Sim... – Disse depois de observá-lo, ainda em silêncio.
- Eu não sou mais uma criança. – Rapidamente tinha tomado
uma postura séria e seus olhos mostravam até um certo tom de preocupação. – Por
isso não tens que voltar a fazer os mesmos sacrifícios do passado para me
defender.
- Mas do que estás a falar? – Tentei manter-me despercebida,
apesar de que a minha mente acabaria por me trair caso não estivesse atenta o
suficiente, controlando cada pensamento que pudesse ter.
- A chamada... Ele queria algo, o que era? – Perguntou-me
preocupado.
- Se não me tivesses cortado a hipótese de o saber, poderia
responder-te.
- Não necessitas de reaver coisas do passado para me
defender. Eu cresci, estou bem e não preciso que te sacrifiques por mim. –
Disse-o bastante decidido, pelo que parece eu não iria mesmo a lado nenhum. Ele
sabia para onde ia.
- Não sei o que ele queria. Achas que não devia de saber o
que se passa? Normalmente Ian nunca dá sinal de vida. É estranho, mas devia de
ser algo importante.
- Eu não quero que vás. Fá-lo por mim. Não vás, por mim. –
Seus olhos se abriram, minhas mãos estavam agora no seu peito. Sentia-me
desarmada, sem nada que pudesse fazer.
Seu sorriso alargou mesmo que não houvesse palavras da minha
parte, mas permaneceu a observar-me, levando uma mão até ao meu rosto e
passando os seus dedos sobre a minha pele morta. Fechei meus olhos e deixei-me
sentir...
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