Inverness Season - Ep 35, Carmen

Era estranho saber que Eric precisava da sua ajuda para supostamente tomar conta de Sheftu. Porquê? Ela sabia tomar conta de si. Parecia que o dia não acabava nunca, cheio de surpresas e emoções que ela desejava estarem bem enterradas. Novos mistérios apareciam, sua mente conseguiria decifrar cada um deles?

“Could It Be Worse?” by Carmen Montenegro


Mesmo depois de fechar a porta, aquela imagem do homem careca ainda me causava arrepios. A sua presença não me abandonava, a sua cara mostrava uma maldade, as suas vestes mostravam que não era alguém de paz e, o facto de estar careca, apenas acrescentava mais estranheza ao seu ser. Quem era? E como raio sabia que ali viva alguém?
As perguntas explodiam na minha cabeça, qual acesso de loucura enquanto me encostava à porta de entrada tentando acalmar-me. Estava de tal modo abalada por tudo aquilo, que nem ouvi Eric aproximando-se. Demorei a vê-lo e a ouvi-lo, apenas via a sua boca a mexer-se rapidamente numa conversa muda.
-  O quê? – Perguntei com um ar confuso.
-  Pedi-te para ficares com a Sheftu.
-  Porquê?
Eric observou-me e um ar de preocupação tomou conta do seu espírito. Aproximou-se de mim, colocou as suas mãos nos lados da minha cara e, com um ar de preocupação extrema, afundou os seus olhos nos meus. Demorou segundos breves e quando acabou de me “ouvir” Eric largou-me. Afastou-me da porta, abriu-a e correu lá para fora, ficou ali parado procurando algo com o olhar. Girou sobre si mesmo umas quantas vezes, até ver que não tinha ninguém. Voltou para dentro tão rapidamente quanto tinha saído, fechando a porta atrás de si.
- Faz muito que o viste? – Perguntou Eric.
- Uns minutos. Foi tudo muito rápido. Eric... – Antes sequer de fechar a boca para dizer o resto da pergunta, Eric voltou-me as costas. Vi que pensava em algo, pois tinha as costas tensas, uma mão na cara e a outra na cintura. – Conhece-lo?
Ele voltou-se lentamente.
- Não...Não, propriamente mas... Seja como for, não poderá entrar.
- O que te faz ter tanta certeza?
- Está casa está armadilhada contra intrusos. Um feitiço de protecção, muito poderoso que demorou a fazer mas, assim que foi feito resultou imediatamente.  –  Calou-se quando se deu conta que dizia muito mais do que devia. – Vou ter de sair.
- Onde é... – Calei-me rapidamente. Aquela pergunta não era do meu território e, provavelmente, Eric não iria responder-me. Ele notou a minha própria censura e tocou-me no braço. Senti naquele gesto o mesmo carinho de antes.
- Não posso dizer-te, mas não te preocupes comigo. – Apertou o meu braço e sorriu-me. Um sorriso que, aliás, pareceu-me bastante falso pois a preocupação nos seus olhos era notória. – Dás uma olhadela pela Sheftu?
Senti uma onda de comichão por debaixo da pele. Remexi no meu cabelo e suspirei tentando controlar-me. 
- Não sou ama-seca.
- Carmen, por favor.
- Porque raio queres que fique aqui a olhar por ela? – Disse algo irritada. – Sheftu sabe cuidar de si.
Eric vendo que me aproximava perigosamente de um ataque de raiva, aproximou-se mais de mim, chegou a um ponto em que a proximidade era tal que me deixou meio nervosa.
- Peço-te do coração.
Senti nova comichão por debaixo da pele. Não era raiva, nem irritação, distinguia bem aquele sentimento apesar de já não o sentir há algum tempo. Pelo menos, não por Eric. Era ciúme. Eric nunca se preocupara tanto comigo o quanto o fazia com Sheftu. Que quereria isso dizer? Seria eu menos importante que ela? Teria ele amado a minha pessoa com menos intensidade do que ama agora Sheftu?
Não disse nada, afastei-me da porta e de Eric sem sequer ter uma resposta torta para lhe dar. Não dei muitos passos de distância, parei quando senti uma mão quente fechar-se em volta do meu cotovelo.
- Não é verdade. – Disse ele calmamente. – Tu és diferente da Sheftu...
- Não quero saber! Tu e eu somos passado. – Larguei-me do seu braço. – Eu olho pela Sheftu mas, fica a saber que deves-me uma. Acrescenta na tua lista.

Aproveitei os momentos que tinha a sós comigo mesma, e puxei alguns cortinados, a casa ficou com a luz mais densa. Subitamente a casa, envolta naquela luz  esbatida ficara mais bela, todo o seu esplendor de décadas anteriores voltara. Tinha um ar tão místico e tão belo, que por momentos, senti que voltara aos tempos clássicos da realeza.
- Já vi que tomaste rédeas do teu novo lar. – Disse uma voz muito conhecida.
- Não aceitei a oferta. - Respondi eu enquanto arranjava as cortinas.
- Não tens que aceitar, é tua e ponto final. Podes voltar-te para mim?
Eu suspirei. Voltei-me, mais ou menos contra a minha vontade, para encarar Lawrence que ali estava num fato negro e com as mãos atrás das costas.
- O que tens atras das costas?
Lawrence sorriu de modo matreiro. Aproximou-se de mim e ergueu a sobrancelha. Retirou as mãos atrás das costas e mostrou o que parecia um embrulho quadrangular num papel castanho com um laço dourado. Estendeu-me a caixa, sempre com o mesmo sorriso.  Revirei os olhos e virei costas aquele Lorde Britanic, não sabia porque mas todos aqueles mimos estavam a irritar-me: já não bastava a sua presença, dar-me a sua caça e agora uma caixinha surpresa de laçarote e tudo.
- Não quero prendas, Lawrence.
Rápido como sempre, ele colocou-se à minha frente, ali estava aquela caixa mesmo à frente dos meus olhos. Como conhecia muito bem, aquela criatura sabia que não iria desistir, por isso peguei na caixa. Rasguei o papel de embrulho, atirei o laço para o lado e destapei. O que estava lá dentro fez-me congelar, senti os meus pés fugirem do chão. Reconheceria aquilo em qualquer lado.
- Não...Onde... Onde arranjaste isto?
- Perguntei por ai e encontrei-o. Não é belo?
- Não! - Estendi o objecto de volta a Lawrence. - Não quero isto!
- Queres sim! É quem tu és!
Engoli em seco. Não acreditava que tinha aquele grande pedaço do meu passado  nas minhas mãos. Lawrence voltou a empurrar a caixa na minha direcção.
- Porquê que atormentas, Lawrence? Sabes bem, como luto para deixar quem fui enquanto humana para trás e agora trazes-me...isto?!  Queres ver se me enlouqueces?
Lawrencen agarrou a minha cabeça entre mãos, os seus olhos azuis mostravam toda a calma e compaixão do mundo.
- Não quero enlouquecer-te, apenas quero relembrar-te de quem já foste. Corre no seu sangue, está na tua família, é a tua herança, Carmen. Os Deuses sabem que vais precisar deste teu antigo saber novamente... – Afastou-se de mim, não sem antes dar-me um beijo caloroso na testa. – Minha querida, Carmen. És tão especial...
Afastou-se de mim com os seus pés a ecoarem pelo soalho, deixando-me ali a tremer com aquele presente em minha mãos. O passado tinha sempre maneira de voltar a assombrar-nos e, naquele momento, eu estava a morrer de medo do meu.

Ali estava eu, sentada na minha cama de olhos pregados no guarda fato que parecia respirar sabendo o que estava lá guardado.
Os Deuses sabem que vais precisar deste teu antigo saber novamente...
Um gigantesco pedaço do meu passado, permanecia naquele guarda-fato e, meu Deus, como tinha medo de revê-lo.
Os Deuses sabem que vais precisar deste teu antigo saber novamente...
 Caso assim fosse, estava perdida!
Ouvi passos no exterior do meu quarto, a porta abriu-se e, nem foi preciso pensar muito.
- Vou buscar o Louis. – Disse Samantha com um tom de voz feliz. Não me mexi, continuei a encarar o armário. – Queres vir?
Não respondi. Nem tinha a certeza do que tinha ouvido. Samantha não se mexeu por segundos, para depois a visão do seu vestido roxo interromper a minha vista do armário. Samantha ajoelhou-se à minha frente, trazia o cabelo apanhado com algumas madeixas soltas, os seus olhos castanhos brilhavam especialmente, talvez fosse a futura presença de Louis.  Então, uma pergunta veio-me a mente.
- Eu ainda pareço muito humana, Samantha? – Ela ficou surpresa. Abriu a boca e fechou várias vezes à procura de uma resposta, mas eu sabia-a e chegou ao ponto em que Samantha nem se esforçou para responder. – Eu caçava vampiros! Sabe Deus, quantas cabeças cortei, quantas carcaças queimei... Eu... E, numa reviravolta idiota do destino, como se fosse uma maneira dos Deuses se divertirem... Sou atirada para esta “morte”. Ironia das ironias, a Caçadora torna-se, literalmente na Presa. E o pior, é que nem posso morrer! Não vês o efeito que isso tem em mim? Tornar-me naquilo que mais odiei enquanto humana? Eu matava coisas como tu, como eu... Todos os dias! Porquê que achas que me agarro tanto a quem fui... É uma maneira de me... Manter viva... De certo modo, algo egoísta, confesso... É como se, inconscientemente, eu não me quisesse tornar um de vós. Como se fosse superior.
Calei-me, já nem sabia o que haveria de despejar mais. Durante o meu discurso Samantha ficara quieta, sem qualquer movimento, igualava-se a uma estátua em mármore branco. Exibi um sorriso falsamente feliz.
- Olha para mim, aqui a destruir a tua felicidade com a minha... Dúvida existencial. – Levantei-me da cama e encaminhei-me para a porta. – Vai ter com o teu Louis, trá-lo cá vou adorar conhecê-lo, com certeza!
Samantha ficou ainda mais confusa. Levantou-se  e caminhou para mim, num gesto – algo que nem imaginava que Samantha algo fez faria – afastou uma madeixa da minha cara.
- Quando voltar, temos que combinar uma viagem às Bahamas. Precisas de relaxar.
Não esperava que ela entendesse. Ninguém entendia, pois ninguém era como eu.

Não sei quanto tempo ainda fiquei no quarto. Sentada em cima daquela cama, de olhos presos no armário, sentindo o peso do passado sobre as minhas costas. Dizia Lawrence, que queria que eu me lembrasse de quem eu fora mas, porquê? Já me era difícil deixar, Carmen, a Humana para trás e agora ele trazia-me aquele gigantesco pedaço do passado novamente? Queria enlouquecer-me?
Os Deuses sabem que vais precisar deste teu antigo saber novamente...
A presença daquele objecto no meu quarto deixava-me desconfortável, por isso decidi sair. Abri a porta de repente, mesmo a tempo de ver Sheftu a passar a correr, nem me viu tão depressa que seguia. Em outra circunstância, a teria abandonado à sua própria maluquice mas, tinha prometido a Eric. Seguia-a até ao quarto e encontrei a criatura a remexer nas suas coisas, a minha atenção foi dirigida a um pedaço de papel escrevinhado em cima da cómoda.
 - Vais a algum lado? – Perguntei sem desviar o olhar do papel. Aproximei-me e li o que continha e guardei-o na mão. – Pensavas avisar assim o Eric?
- E tu que tens a ver com o que eu faço? – Respondeu sem me dar qualquer importância.
-  Nada, mas tenho de me intrometer quando vais fazer alguma loucura que me faça aturá-lo com a sua loucura por ti. – Disse com um tom meio azedo. Custava admitir mas Eric estava enlaçado nas teias de Sheftu, nada podia fazer.
- Não tens nada que te intrometer.
Encaramo-nos por segundos até uma voz cantante fazer-se notar.
  - Está alguém em casa?  Era a voz de Samantha e vinha acompanhada de alguém. Virei costas a Sheftu e desci.
Lá em baixo ela esperava acompanhada de um jovem cavalheiro de bela face e corpo forte. Uma coisa era certa: Samantha tinha escolhido bem  o seu amado. Fui parar perto de Eric, que aparentemente ainda não se tinha ido embora – ou já teria voltado? – E entreguei-lhe o papel que Sheftu havia escrito. Ele leu rapidamente  e esmagou-o entre suas mãos, lançando um olhar a Sheftu, aproximou-se dela e agarrou-a pela cintura.
-  Olá a todos... Quero-vos apresentar o meu Louis. – Abraçou-se mais a ele, felicíssima por tê-lo por perto. O meu olhar desviou-se para Eric e Sheftu que pareciam estar muito juntos naquele momento, que claramente, não era deles. Uma espécie de vómito impulsivo de palavras incomodadas saiu disparado da minha boca.
- Parem com isso, não vêem que temos convidados? – Sheftu ao contrário, lançou-me um olhar furioso, que eu ignorei por completo.
- Eric, não podemos ter uma conversa, nós os três? – Perguntou Samantha com delicadeza.
- Tem que ser agora? Tenho um assunto pendente... – Respondeu Eric, ainda agarrado a Sheftu. Afinal, ainda não tinha saído.
- Não demoramos muito, vais ver... Não é Louis?
-  Sim, claro... – A sua voz era grossa e via-se que aquilo tudo causava-lhe um pouco de embaraço. – Não queremos tirar muito tempo por sua parte, é rápido.
Estendeu a mão à espera de um cumprimento da parte de Eric, que assim o fez com toda a cortesia de sempre. 
   - Então, está bem... Apenas espero que me possa chamar por tu, já que temos alguém em comum... – Disse Eric sorrindo. Voltou-se para mim com um tom mais baixo. – Carmen, trata de levar a Sheftu para o quarto.
- Mas... – Teria eu, em algum ponto da minha vida, virado ama-seca?
- Creio que não te importas de me fazer esse pequeno favor... Como os ouviste, eu não demoro muito... – Interrompeu-me Eric. Larguei um suspiro sonoro. Calma, Carmen. Tem calma.
- Está bem, está bem... Depois acertamos contas, nós os dois... – Afirmei. Voltei-me para Sheftu e fiz-lhe sinal para as escadas. Ela voltou-se e começou a subir degrau a degrau. A irritação estava estampada em cada um dos seus movimentos, cada passo, cada mover de braço e até quando se sentou na cama. Acredita, Sheftu também não estou feliz.
- Não penses em sair enquanto o Eric ainda não chegar.
Sentei-me na poltrona junto a janela, só mesmo por acaso o meu olhar ficara preso nos seus movimentos quando, na realidade a minha mente continuava a divagar. A maldita caixa que continuava a respirar no meu armário.
Olhei para Sheftu, parecia concentrada em algo. Parecia decidir o seu futuro ou, simplesmente a pensar como jogar com as cartas do presente. 
- Em que pensas? – Perguntei. Vi o seu olhar confuso enquanto me observava.
- Como?
-  É estranho... – Comecei por articular uma falsa conversa, sem saber muito bem por onde começar...
-  Podes dizer... Eu não levo a mal.
Mastiguei as palavras até saírem.
-  Acredito que já vi bastantes vezes essa tua expressão ao espelho... Por isso é que me questionei no que pensavas...
Não demorou até Eric entrar pelo quarto adentro e eu sair.

Voltei novamente ao início, sentada em cima da cama a observar o meu armário com a caixa lá dentro. Porque iria Lawrence dar-me aquilo? Que me escondia ele?
Num acto de loucura total, levantei-me; Caminhei para o armário, puxei as portas e ali estava a caixa. Ajoelhei-me à sua frente, puxei a caixa e tirei a tampa. Ainda não acreditava que aquilo estava ali. Porquê?
Os Deuses sabem que vais precisar deste teu antigo saber novamente...
Tirei de lá o seu conteúdo, estendi-o no chão a minha frente e passei a mão pela sua fronte; Imediatamente fui inundada de memórias. De facto toda a minha história estava naquele objecto. Uma coisa tinha a certeza, Lawrence andava misterioso e nunca me daria isto sem qualquer intenção, apenas por gozo. Ele sabia alguma coisa, estava na hora de termos uma conversa. 

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