Inverness Season - Ep 32, Sheftu
Enquanto ela torturava aqueles coitados que lhe apareceram
pelo caminho, sua mente voltava pelos tempos em que um pequeno menino traçara
seu destino, agora homem. Não sabia ela que ele estaria por perto, bem mais próximo
da morte do que ela alguma vez pudesse imaginar. O que faria? Deixaria
simplesmente que ele morresse?
“Cursed Witch” by Sheftu Nubia
Duas carcaças ainda vivas permaneciam do meu lado, gemendo e
suplicando pelas suas vidas, tentando escapar mesmo com as suas pernas
partidas, mas sem grande sucesso.
O terceiro, aquele que me tocara no cabelo, estava agora em
minhas mãos, em perfeito lago Ness, tentando conter a respiração, para que a
água não se infiltrasse nos seus pulmões, lutando para que por algum milagre
sua vida fosse poupada.
Os outros dois gritavam na esperança que alguém aparecesse,
mas a zona era restrita, muito pouco provável que me conseguissem criar mais
vítimas. Sim, caso alguém testemunhasse as suas mortes levaria um fim igual.
Como estes homens, tão cheios de si nas horas em que roubam
a sociedade, aclamando ser até um direito pois toda a humanidade está
corrompida, como agora choram estes humanos, reclamando como direito a
misericórdia que nunca recebi, mesmo não fazendo nada para receber tal
maldição.
E lá ia um corpo a boiar, que o encontrassem, nada iriam
concluir. Enquanto afogava o segundo, o outro continuava com as suas frases
para um ser que parecia não conseguir ouvir as suas preces. Muito poderia
falar, nada iria conseguir. Este segundo oferecia mais luta, tentava manter-se
à tona, captando oxigénio enquanto tentava, ao mesmo tempo, persuadir-me a
deixa-lo viver ou a matá-lo pela eternidade que me cercava a toda a hora.
- A eternidade é minha, condena-te à tua morte e deixa a
minha morte cá comigo. Não me obrigues a piorar a tua situação, há muitas
outras mortes piores que esta e imaginação não me falta. – Respondi sibilante,
esmagando-lhe o pescoço e dando-lhe o mesmo destino que o primeiro. – Vem cá,
está na tua hora...
Levantei-me para buscar o último, que gemia e permanecia nas
suas preces, para que houvesse algum milagre que o salvasse... Levantei-o e,
sem mais demoras, coloquei-o a demolhar sobre as águas onde o monstro Ness
repousava, à espera que estes seus petiscos pudessem fazer milagres. Talvez com
este, o crente, pudesse finalmente criar descrentes na realidade que existe sobre
este lago: De monstros, eu já basto. Apenas nestes minutos já matei mais
humanos do que a besta deste rio, faço estragos e crio tudo o que me apetecer e
ninguém me vê. Tal como este monstro que deu o nome ao lago, mas com mais
complicações a cada hora que eu surjo perante alguém.
Enquanto permanecia com a minha mão sobre o pescoço do
homem, algo me captou a atenção, não sabia porquê, mas algo me fez voltar-me
para observar a minha retaguarda. Nada se via, o que se tornava um pouco
estranho, por causa da sensação que sentia. Bem, já que não era nada continuei
a afogar o homem.
Quando as últimas forças se escassearam da carcaça, deixei-a
seguir o seu caminho, boiando segundo a direcção que lhe dava. Ergui-me,
observei um pouco este enorme lago que estava à minha frente, recordando-me de
um momento que não parecia ter sido há muito, mas com bastante história...
- Então não sabes quem são os meus pais? – Perguntou-me o
rapaz, bebé ainda, que aparentava ter já uns 6 anos... Mas eram poucas as
semanas que teria.
- Sei que teu pai deve ser um vampiro, e tua mãe deve ter
morrido. Talvez já andem até à tua procura, estás em risco. – Respondi com uma
leve dor ainda dentro de mim mesma, tinha sido há tão pouco tempo que Kiya me
tinha deixado. Tudo por querer ser livre, sem qualquer família e com todas as
liberdades que um ser eterno tem. O único problema era que eu já calculava onde
isto tudo iria parar... E nada de bom iria acontecer depois disso.
- Mas então meu pai me vem buscar? Ele está à minha
procura? – Perguntou-me, segurando-se sobre as minhas saias, com o seu olhar
curioso e totalmente inofensivo.
- Sim, ele te procura mas não posso deixar que te
encontre. – Respondi num suspiro, pegando-lhe ao colo e seguindo a viagem.
Permanecer nesta zona seria uma completa loucura.
- Porquê? – Perguntou-me ele com seus olhos bem abertos
já molhados, sentindo a falta de algo que, se algum dia o encontrasse, não
traria nada além de sofrimento para este pobre pequeno.
- Porque teu pai é alguém muito mau.
- Como sabes? – Estava indignado com o que eu dizia, se
eu nunca o tinha conhecido não poderia saber como ele era... Próprio de uma
mente ainda repleta de inocência, essa que teria que acabar o mais rapidamente
possível.
- Ele encantou a tua mãe e fê-la morrer para que nascesses...
Achas que isso é feito de alguém que seja bom?
- Poderia querer companhia e não saber que iria acabar
assim... – Tentou justificar-se, um pouco pensativo ainda nas coisas que eu lhe
dizia.
- Até tu, uma criança, deverias saber que vampiros não
são bons. – Peguei no seu corpo apenas com uma mão e o coloquei no ar. – Até
eu, que te estou a ajudar sou má. Não confies tanto na bondade das pessoas,
vampiros não são pessoas, por isso serão muito piores do que os humanos.
- Eu acredito que tu não és má. – Respondeu com um
sorriso, ainda desamparado no ar, enquanto eu permanecia a olhá-lo. – Eu vejo
em ti bondade, posso ser pequeno, mas é o que eu vejo.
- Pois, então irei mostrar-te o quanto estás enganado. –
Respondera com um tom autoritário, pousando-o no chão e seguindo para a
estrada.
Passava uma família de pobres, seus trajes já estavam
coçados e esburacados, seus rostos aparentavam ter fome, suas crianças – dois
meninos com aparentemente uns sete anos – mal conseguiam andar.
Era incrível como uns ossos tão frágeis como aqueles que
se observavam colados à pele nua, pois mal havia roupa para eles, conseguiam
ainda acompanhar seus pais. Observei-os, estavam a olhar para os meus trajes,
afastando-se logo um pouco e fazendo uma pequena vénia perante mim.
Observei o pequeno Eric, que naquela época não tinha
nome, nem fazia intenção de lhe dar. Quem cuidasse da sua educação escolheria o
seu nome, por enquanto era apenas o rapaz meio humano, depois se tornaria
alguém, mas eu já não estaria por perto para saber no que se tornaria – pensava
eu a cada passo que dávamos para a sua nova casa.
Seus olhos me observavam fascinados, esperando o que eu
iria fazer de seguida, tentando até aprender comigo – o que era ridículo e
desnecessário. Olhei novamente para as crianças, aproximando-me e seus pais
rapidamente alarmaram-se, tentando defender-se de alguma forma. Peguei na mãe,
abri seu peito e arranquei seu coração, aproximando-o das crianças ainda em
estado de choque e despedaçando-o mesmo em frente deles. Elas correram e tentaram
agarrar-se ao seu pai, que tinha um enorme pau dirigido para mim, para tentar
defender seus filhos.
- Sheftu! – Ouvi o pequenote berrar por mim, voltei-me
com rapidez e vi um homem a segurá-lo, empunhando uma navalha bem perto do seu
pescoço.
Abandonei o pobre homem, ouvindo o seu coração a pulsar
rapidamente e seus passos a seguirem com a maior rapidez humana, tentando
conseguir escapar no momento de distracção.
- Quem és tu? – Perguntei ao outro, aproximando-me com
cuidado, para que não tentasse fazer qualquer loucura à criança.
- Não me reconheces? – Perguntou-me com um sinal de
satisfação por não reconhecê-lo.
- Mostra-te, vá... Não tenho paciência para brincadeiras.
Quem és? – Meti minhas presas de fora, pronta para atacar. – Sempre podes morrer
e descobrimos depois...
- Calma, apenas venho trazer-te um recado. Pensava que te
poderias lembrar de mim...
- Quem és? E porque haveria eu de te reconhecer? –
Respondi rispidamente, dando mais um passo, fazendo-o recuar um pouco.
- Tem calma que ninguém tem de se magoar... – Respondeu
recuando ainda mais.
- Claro, caso fores inteligente o suficiente não
necessito de te matar.
- Eu mostro-te, não precisas de estar tão irritada. –
Acusou-me, dando mais um passo para trás.
- Está bem, mas primeiro passa-me a criança. – Avancei
mais um passo, mas desta vez guardando as minhas presas para mostrar que estava
a colaborar.
- Não posso, são minhas ordens levá-la comigo. –
Respondeu-me receoso, já sabia que eu não iria gostar mesmo nada do que ele
tinha acabado de dizer.
Pena é que o tenha desiludido, sentando-me numa pedra que
estava próxima, e cruzei os braços, lembro-me como se fosse ainda hoje a sua
expressão de espanto.
- Então, não me vais explicar? – Perguntei, pensava que o
seu objectivo não iria passar a ser nada mais do que um momento do seu passado.
- Sim, claro. – Respondeu-me, sentando-se no chão ainda a
segurá-lo.
- Agora, faz-me um favor e deixa-o em paz. – Ordenei-lhe,
fazendo-o estremecer um pouco, mas adoptando o seu plano para a frente. – Tens
noção de que não sairás vivo daqui caso continues com isto...
- Claro, mas também sei que caso não o faça, minha vida
permanecerá presa eternamente ao meu amo.
- E posso saber o seu nome? – Estava já um pouco farta de
toda esta situação, teria de acabar rapidamente.
- Claro, podes tratá-lo por Zeus, pois é o mais poderoso
dos nossos.
- Gostava de testar essa teoria... – Respondi animada,
erguendo-me e cortando-lhe a cabeça fora. – Agora sim, enviaremos esta cabeça
para o idiota do teu pai.
- Vês, afinal consegues ser boa... – Respondeu-me
sorrindo.
- Se para ti, isto tudo que viste é ser boa, então afinal
temos de te arranjar uma família mais rápido do que eu pensava. Não tens de ser
um dos nossos, és humano e habitua-te a isso. – Respondi-lhe com autoridade, arrancando
a manga do homem, do lado esquerdo. As minhas suspeitas confirmavam, tinha na
sua pele marcada uma Ansata, tal e qual a minha. Sabia muito bem o nome daquele
que tinha criado este rapaz, e muito provavelmente estaria à espera que eu me
juntasse a ele. Era idiota, para além da estupidez extrema de deixar que seus
aprendizes tenham o nosso símbolo. Éramos algo que já tinha morrido há muito,
mas mesmo assim teimava em tentar manter isso vivo.
Naquela época ainda não tinha bem consciência de quem
poderia tomar conta deste ser tão necessário e tão útil para o vampiro que
tinha seduzido sua mãe. Mas havia algo que eu sabia, não iria permitir que
ninguém pudesse transforma-lo num monstro – como me tinham obrigado a ser.
Seguíamos rumo a umas famílias de outro lugar, alguém que
pudesse proteger, ensinar e torna-lo forte. Para que quando a estupidez o
abalasse, aquela a quem chamam a vontade de ser livre e que se torna
libertinagem, conseguisse seguir o seu rumo sem que seu pai o usasse como um
objecto ou mesmo até um troféu.
Para uma criança com existência de apenas umas semanas,
sua mente já tentava observar e captar tudo aquilo que vivia ao mais ínfimo
pormenor. Rapidamente me veio uma imagem dele, ainda em Inverness, ao pé do
lago, observando as pessoas que passavam por uma pequena estrada de terra.
Captava todo o movimento e suspiro que cada um dava, adivinhando dores ou então
destinos.
Considerava-o um achado, algo simplesmente perfeito
demais. Por isso seria ainda mais complicado arranjar alguém que pudesse
dar-lhe tudo aquilo que era necessário para o seu desenvolvimento.
Abanei minha cabeça para que as imagens de um passado se
esfumassem, talvez fosse hora de deixar de deambular por aí e aguentar com esta
criança, de lhe dar uma lição que talvez nunca aprendera – a lição mais
complicada de lhe dar, principalmente para mim.
Suspirei com a consciência de que tudo isto começava agora e
não acabava nunca, poderiam ser milénios até, mas as memórias permaneciam bem
vivas. Umas ainda reais, outras já meias distorcidas. Todos aqueles cuja mente
é constantemente bombardeada de informação perde-se pelas novas horas e certos
momentos apenas se tornam uma imagem bem ao de longe. Sem que nada se possa
fazer para reaver esses momentos, sem ser vivê-los ou senti-los de novo. E
viver novamente o meu passado era tudo aquilo que eu não queria jamais voltar a
fazer.
Eu tinha forças em mim para tudo isto, acreditava piamente
no que dizia, mas a verdade era que a coragem era pouca e a dor era demasiado
insuportável para se sentir. A altura em que eu tinha de enfrentar fantasmas do
passado até não era má de todo, o pior é quando os fantasmas do passado nos
aparecem no presente e permanecem mesmo à nossa frente, sem existir outro fim a
não ser enfrenta-lo. E hoje era um desses dias, em que omissões torturavam a
minha morte, em que verdades teriam de ser ditas e que fins estariam próximos.
Apenas permitir que tudo seja diferente... Era apenas isso que eu mais
desejava...
Uma luz em plena floresta me chamou à atenção, rapidamente
segui o seu rasto, de onde provinham demasiados ecos de um som estridente que
aumentar a cada novo passo que seguia em sua direcção.
Deparei-me com uma mulher desamparada no chão, Eric erguia
sua voz que se estendia por cada centímetro em seu redor. A mulher de cabelos
negros incendiados de roxo permanecia firme, aguardando o seu fim. Uma questão
de segundos foi o quanto durou antes que eu interferisse, colocando-me entre os
dois, servindo de escudo, desafiando-o.
- O que estás a fazer? – Perguntou-me irritado, sem perder a
guarda nem sequer por um momento.
- Isso é o que te pergunto... O que te deu? – Perguntei
impressionada com a sua expressão. Permaneceu ainda revoltado com o que se
tinha passado aqui, mas acabou por se acalmar.
- Foste tu que a contrataste? – Acusou-me.
- Ninguém me contratou. Estou por conta própria. – Respondeu
rispidamente a mulher, fazendo com que eu me virasse para ela, que já estava de
pé, e observasse por uns momentos.
Branca como a morte, seu rosto mostrava garra e não temia
qualquer acontecimento, mesmo quando a sua vida parecia ter um fim.
- Então diz-me o que te trouxe aqui. – Ordenei fortemente,
demonstrando que não estaria aqui para julgar ninguém.
- Nem queiras saber... Não tem importância. – Respondeu-me
Eric, provocando um sorriso na mulher, aquela que me começava a irritar com o
seu silêncio.
- Então? Não me dizes o que cá vieste fazer? – Indiquei de
novo.
- O teu amigo tem razão, não vais querer saber. – Finalmente
respondeu.
- Testa-me. – Conclui.
- Muito bem, já que insistes. Vim buscar a sua alma e não
descansarei até que a tenha. – Respondeu-me sorrindo.
- Como?
- Foi o que ouviste. – Nada mais disse, sentia em meus
ombros as mãos de Eric, tentando acalmar-me e acabando por ter sucesso.
- Qual é o teu nome? – Perguntei.
- Porque o queres saber?
- Porque simplesmente deves-me a tua vida. E creio que tens
consciência de que a alma, todo ele, me pertence. Logo caso queiras começar uma
guerra, pelo menos tenho de saber o nome do meu inimigo.
- Pois muito bem, que ganhe a melhor. O meu nome é Trish e
tu não vais ter por muito tempo o que eu quero. – Afirmou, convicta da sua
decisão.
- Então não te esqueças que me deves a tua vida e que em
breve eu a reclamarei.
- Será interessante tentares.
- Será interessante veres-me a conseguir.
- Agora vai, que não necessito de ti mais por hoje. –
Respondi ferozmente.
Via observar-me e segui o seu olhar até Eric, o prémio que
ela desejava ganhar e que eu jamais o permitiria. Poucos segundos depois, observei-a
ainda quieta, no mesmo lugar, enquanto seguia com ele rumo à mansão.
- Tens consciência de que ela nos seguirá, não tens? –
Perguntou-me depois de estarmos um pouco afastados.
- E tu, tens consciência de que eu não te autorizei a
dirigir-me a palavra? – Ele ia a dizer mais alguma coisa, porém rapidamente se
deteve pois certamente estaria a ver nos meus pensamentos que não era boa hora,
para variar.
Agora tinha uma guerra eterna pela frente com a consumidora
de almas que se lembrara de desejar logo a única alma que podia realmente me
importar. Eu sabia que tudo isto era demasiado para a minha cabeça e que
brevemente seria tudo descontrolado. Porque a raiva que teima em nascer em mim
nunca se esquece, a cada segundo que passa fico cada vez mais certa de que tudo
o que eu tenho e sou é apenas a morte. O resto acabará sempre por me magoar,
por me mutilar a alma e o coração. Caso eu ainda tenha alma, prevejo-a
despedaçada de mentiras, torturas e maldições.
E, mais uma vez, estava amaldiçoada. Era aquela bruxa a
minha próxima maldição, despedaçar e aniquilar é a única solução, esvaziar a
mente e o coração é o melhor a fazer nestas alturas. Como a vida poderia ser
tão simples caso a destruição fosse apenas isso, sem consequências nem fins...
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